N'água e na pedra amor deixa gravados
seus hieróglifos e mensagens, suas
verdades mais secretas e mais nuas.

"Entre o ser e as coisas"
Carlos Drummond
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sexta-feira, 6 de fevereiro de 2015

O "palanque whatsapp" e o "pensamento fast-food"

Tornou-se comum, no whatsapp, o compartilhamento de textos, que são repassados de grupo em grupo – como é o caso deste aqui.

Muitos deles versam sobre política.

Esse é um assunto que interessa a todos, já que a política diz respeito ao que é de interesse público. Assim, é da maior importância que haja compreensão plena dos textos que cada um compartilha com seus grupos.

Muitas vezes me pergunto se essa compreensão é sempre clara para todos os que repassam tais textos. Em geral, são textos críticos, de tom exaltado – e é fácil entender por quê.

Os governos, em todas as suas esferas, executiva, legislativa e judiciária, estão, de fato, em um nível muito baixo de qualidade, de justiça e de honestidade, e, portanto, merecem muitas críticas.

(Para dizer o mínimo.)

Além disso, sempre há opiniões diferentes sobre que programas devem ser executados, e é saudável estabelecer um diálogo sobre que direção os governos devem tomar.

Mas me parece que, em muitos desses textos, o que provoca a simpatia dos leitores, e seu repasse a outros grupos, é um “tom” geral que os permeia. Um “tom” que dá a impressão de ser “contra” este ou aquele partido, este ou aquele programa de governo.

E, assim, tomando-se o “tom” como oposição ao que se considera equivocado ou injusto, todas as minúcias, todos os detalhes do texto, acabam passando como verdades, que “consumimos” e adotamos sem muita reflexão.

A própria natureza do whatsapp (e também do e-mail, onde textos do tipo também circulam) é a da velocidade. Instantes depois de recebermos cada mensagem, novas mensagens aparecem, e passamos rapidamente de uma a outra. Além disso, recebemos as mensagens no meio dos nossos afazeres cotidianos, então é difícil se demorar em cada uma delas.

Mas essa velocidade pode impedir que haja uma compreensão mais exata de cada uma das afirmações dos textos, sendo absorvido apenas o “tom” deles. A compreensão demanda um certo tempo, pois é necessário refletir sobre o que é lido.

Muitas vezes as afirmações presentes nos textos possuem implicações que não são claramente percebidas. E, desta forma, vai se formando uma opinião pública, que é baseada na repetição de pensamentos, e não na reflexão autônoma sobre eles.

É como se estivéssemos sendo consumidores de pensamentos “fast-food”.

E esse é um tipo de pensamento que não nutre a nossa mente. Um tipo de pensamento que não a fortalece. Um tipo de pensamento que não contribui para nossa evolução como sociedade.

Pois é um tipo de pensamento em que, ao invés de pensar, nós “somos pensados”.

E os autores dos textos acabam arregimentando simpatizantes, aproveitando um sentimento de indignação legítimo para, subliminarmente, disseminar opiniões que lhes interessam. Opiniões, muitas vezes, enganadoras, falaciosas, com implicações imprevistas, baseadas em supostos “fatos” que, se fossem checados, se revelariam falsos.

Tomando este próprio texto como exemplo, consideremos:

Há, em algum momento, uma crítica direcionada a este ou aquele partido, a este ou aquele programa de governo? Ou é somente o “tom” do texto que dá essa impressão?

Pois o que tento dizer não é que este ou aquele partido está certo, este ou aquele programa é desejável ou não, esta ou aquela opinião é correta ou errada.

A questão, aqui, é entender com profundidade o que estamos lendo. E, assim, ter mais poder sobre nosso próprio pensamento. Poder para formar opiniões mais claras. Mais consistentes. Mais embasadas. Mais refletidas. E, no fim das contas, mais fiéis à nossa própria maneira de ver o mundo.

E, assim, poder estabelecer diálogos mais produtivos, que transcendam o nível das ofensas e atinjam o nível da busca clara, e ao mesmo tempo firme, daquilo que deve nortear a política do nosso país, do nosso estado, da nossa cidade.

Lembrando sempre que o respeito à opinião do outro é indispensável para a democracia e para o avanço de nossa sociedade. Não é desqualificando o outro que se evolui, mas através da participação consciente e do diálogo produtivo.

E diálogo é diferente de dois monólogos se enfrentando.

Ouvir, abrindo-se para entender e refletir sobre o que se ouve, é tão importante quanto falar.

Protestar é fundamental para a melhora da nossa sociedade, mas é o protesto com pleno conhecimento de causa que pode garantir uma melhora verdadeira.

sábado, 31 de janeiro de 2015

Evolução

Ouvimos, com certa frequência, a frase “não sou perfeito”. Poucos de nós ousariam afirmar o contrário.

Muitos talvez o pensem, possivelmente sem ter consciência disso. E, então, agem de forma arrogante e desdenhosa com os outros. Mas, para a maioria de nós, a consciência das próprias limitações é bastante clara - mesmo que possa ser perdida neste ou naquele momento de distração, em que nos consideramos infalíveis, donos da verdade, irrepreensíveis. 

Meu pai costuma dizer que o ser humano não é perfeito, mas é perfectível. Eu interpreto essa frase como uma indicação de que, apesar de nunca podermos chegar a ser perfeitos, podemos sempre evoluir. Sempre nos tornarmos pessoas melhores.

Uma de nossas tendências mais comuns, que tem a ver com a sensação de sermos perfeitos, é a de condenar os outros. 

(Não se trata, aqui, das condenações de cunho judicial, que devem, evidentemente, resultar em punições e - o que ainda precisa ser mais desenvolvido - processos de ressocialização)

Essa tendência também provém do nosso desejo de evolução, pois parte de uma percepção de algo que não está bom. Porém, ela não costuma ser produtiva. A condenação, neste sentido específico, é diferente da crítica, pois se dirige à pessoa, e não ao comportamento ou à ideia. 

Quando condenamos alguém, é como se colássemos o comportamento condenável, ou a ideia que consideramos falsa ou absurda, à sua personalidade. Como se não houvesse espaço para a evolução, para a melhora, para o diálogo. A crítica, ao contrário, ou pelo menos a crítica verdadeiramente construtiva, mira o comportamento ou a ideia, e não a pessoa.

É impossível sermos humanos e vivermos sem crítica. Se não fosse assim, não evoluiríamos, já que consideraríamos tudo perfeito como está. E nosso impulso de melhorar não combina com tal crença. Só temos que saber usar a dose certa, nos momentos certos, pois a crítica, em excesso e mal colocada, pode ser opressiva, e terminar não contribuindo para evolução alguma.

Faríamos bem em praticá-la apenas quando fosse de fato contribuir positivamente, sempre com respeito, serenidade e espírito amistoso, além de nunca esquecer de reconhecer, valorizar e elogiar as atitudes louváveis - assim elas serão estimuladas.

Quando usamos a faculdade crítica direcionando-a somente ao outro, e nunca a nós mesmos, estamos nos impedindo de evoluir, tanto como indivíduos quanto como sociedade. E, para direcionar nossa faculdade crítica a nós mesmos, precisamos ter humildade. Precisamos ter a percepção de que não somos perfeitos, mas que somos perfectíveis. O meu comportamento de hoje pode ser condenável, ou pelo menos, de algum modo, imperfeito, e meu pensamento pode ser inconsistente e equivocado. Mas, como membro da humanidade, eu tenho um valor essencial, que me permite superar esse comportamento ou modo de pensar, e me tornar uma pessoa melhor e mais ponderada.

E isso vale para todos nós.

A evolução coletiva sempre passa pela evolução pessoal. Se queremos uma sociedade mais amorosa, ou pelo menos mais solidária, mais justa, mais honesta, mais responsável, é preciso que cada um de nós se torne mais amoroso, mais solidário, mais justo, mais honesto, mais responsável.

Geralmente, tendemos a achar que já somos tudo isso. E que o problema é que os outros não são. E, como não temos poder sobre o outro, não temos como contribuir para melhorar nossa sociedade. Eu tendo a pensar que, mesmo se quisermos considerar que temos um caráter superior ao da maioria, sempre podemos melhorar-nos ainda mais.

E é como se, cada um evoluindo, levasse os outros consigo, juntos, como cada gota acompanha outras em uma onda do oceano.

Pois somos seres relacionais.

Independente da qualidade de nosso caráter de hoje, se o melhorarmos ainda mais, inevitavelmente influenciaremos de forma ainda mais positiva os que estão à nossa volta. E estes, por sua vez, influenciarão mais positivamente os que estão à volta deles. E toda essa positividade se difundirá pela sociedade e nos tocará novamente, numa nova onda.

Para fazer parte deste oceano de evolução, não precisamos esperar que os outros mudem. Que os outros se tornem melhores. 

Sejam esses outros os políticos corruptos, os empresários gananciosos, os chefes tiranos, os familiares e colegas de convivência difícil, os profissionais desonestos, os estranhos mal-educados, ou quem quer que seja.

Para fazer parte deste oceano de evolução, só precisamos nos tornar uma de suas gotas. Melhorando a nós mesmos, melhoraremos o mundo.

A cada dia um pouco mais.

sábado, 15 de janeiro de 2011

O sueco é a língua mais bonita do universo

Estava, há pouco, revendo Através de um Espelho, um filme do fascinante país escandinavo, cujos personagens parecem instrumentos e expressam a história em fluência musicada. Parando para pensar e consultar os lembretes da memória, eu diria que vi uns treze filmes suecos. Cineastas suecos? Hmm... deixa eu ver... quantos mesmo? Ah, um. Como posso ter esquecido? Mas, eu dizia, não existe no universo língua mais bonita que a sueca. Alguém, conhecendo parcialmente a minha biografia, diria que a ideia é influência das bandas de Estocolmo e imediações, que eu escuto inflamado. Lesado engano. As referidas bandas, TODAS, cantam em inglês, malfadada dicção semi-universal do mundo pós-moderno. Outro, desconhecendo minha biografia, diria que fui abduzido pelas pornozadas e mulheradas e alouradas, tão afeitas ao espírito viking. Ao leitor das primeiras linhas, revelou-se que a língua sueca me enlaçou pelos sons que produz, inserida no conjunto mais amplo de ar, vibração, entonação, ressonância e imagem. Nesta segunda apreciação de Através de um Espelho, escondi as legendas. Epifanicamente, deparando-se meus ouvidos com uma absoluta privação de semântica, a melodia, o ritmo e os contornos desse Sueco, desfrutados como novos, assombrando-me com toda a força do convencimento, não guardaram lugar para incertezas: Sasom i en spegel. O sueco é mesmo a língua mais bonita do universo.

domingo, 20 de junho de 2010

Treze anos, Estados Unidos

O ano de 1994 foi um ano-chave para mim. E, por incrível que pareça, o fator determinante foi a televisão. Chegou a tv a cabo em minha casa, logo em janeiro. Mais especificamente, dois canais mudaram a minha rotina e ampliaram o meu universo: MTV e ESPN.

Começando pelo segundo, devo primeiramente dizer que o futebol havia deixado de ser o meu esporte número um. Desde que vi Magic Johnson estampando a capa de uma edição da Veja, em 1991, e li a matéria sobre a estrela do basquete americano admitindo que era HIV positivo, fui me inclinando na direção desse esporte. Comecei a jogar numa escola, comprei um video do Magic, e me divertia imensamente com os games "Lakers vs. Celtics" e "Bulls vs. Lakers". Em 1993, passei a assistir as transmissões de NBA da Bandeirantes, na faixa nobre do esporte, e invejava um colega que via os jogos pelas transmissões americanas. Finalmente, a ESPN deu as caras em minha casa, e a partir daí acompanhei ainda mais de perto a liga de basquete americana.

Infelizmente, o meu time, o Seattle Supersonics, que havia tido a melhor campanha na temporada regular (a primeira sem Michael Jordan desde 1984), foi eliminado na primeira rodada dos playoffs, para o Denver do poliglota filantrópico Dikembe Mutombo. Foi uma tragédia. Prostrado em frente ao Sportscenter, eu não acreditava.

O Brasil de 1994 era um time decente, com um excelente goleiro, bons volantes e grandes atacantes. Comemorei muito a primeira copa vencedora do Brasil em minha existência, mas posso afirmar, com certeza, que uma eliminação do Brasil não doeria tanto quanto doeu a do Seattle.

E, falando em Seattle, 1994 foi o ano em que, através da MTV, conheci o Nirvana e outras bandas daquela cidade, e em que senti amargamente a perda de Kurt Cobain. O primeiro clip da banda a que assisti foi "Heart-shaped Box". Não habituado a rock pesado, de início a música não me agradou. Mas foi só ver "Smells Like Teen Spirit" que, transportado às minhas antigas aulas de natação (em que o alto-falante tocava essa música), constatei que já gostava de Nirvana e não sabia.

Música e basquete, uma combinação viva ainda hoje em minha história. Provavelmente, até o fim.

domingo, 13 de junho de 2010

Nove anos, Itália

Eu estava na casa do Joãozinho. Não me lembro qual jogo passava, mas se tivesse que arriscar diria que foi algum da seleção dos Camarões. Roger Milla foi o grande heroi dos underdogs de 1990. Liderou seu time à vitória na estreia, contra a então campeã reinante, a poderosa Argentina. Torci bastante para o camaronês quase idoso, que dava ares africanos à copa - algo, para os meus olhos infantis, inédito. Aliás, o Joãozinho era descendente de africanos. Havia se mudado do meu prédio para uma casa enorme, um ou dois anos antes. Seus pais eram ricos e, provavelmente, não podiam ter filhos. Eu sempre me perguntava se Joãozinho, que devia ser um ou dois anos mais novo que eu, tinha conhecimento do óbvio: era adotado. A mim não parecia, e eu tomava muito cuidado para não tocar no assunto. Gostava muito da companhia dele, ia sempre nadar e jogar bola em sua casa. Porém, perdemos o contato antes que pudéssemos conversar sobre desigualdades, preconceitos e injustiças.

O Brasil ganhou todos os jogos na primeira fase daquela copa, todas vitórias magras. Suécia, Escócia e Costa Rica, se me lembro bem. Aí, nas oitavas, a defensora do título. Tinha ido mal nos três primeiros jogos, foi pegar logo o Brasil. Eu estava na casa do Rodrigo (era casa ainda). Nunca me esquecerei daquela cena. Lá vem Caniggia, lá vai Taffarel em cima dele, lá vem drible, lá vem bola, lá vem gol. 1 x 0 Argentina. Hasta la vista.

Eu não estava dando sorte para a seleção. Eliminada nas quartas na minha primeira copa, nas oitavas na minha segunda. Isso sem contar a verdadeira primeira copa da minha vida, a de 1982, em que eu tenha talvez participado com choros e acenos, entre uma engatinhada e outra. A romântica copa espanhola, a seleção dourada que não ganhou. Só restava, mais uma vez, esperar.

quarta-feira, 9 de junho de 2010

O muro e a revolução

Havia chovido no dia anterior. Uma tempestade de gelo cortante, ventanias violentas, marcas em carros, vidros quebrados, janelas desprevenidas inundadas, árvores derrubadas. A manhã seguinte, porém, parecia transportada de outra estação. Não choveu ontem, nos tentava a paisagem azul e dourada e, sobretudo, quente.

Os meus passos naquela manhã são irrelevantes. O que fez o dia digno de lembrança foi o muro da casa da análise. Um muro amarelo, daqueles que se você encostar a mão sente a aspereza, se passar a mão se machuca. Nessa tarde, tinta preta, inescorrida, estampava o A dos anarquistas, dentro de um círculo negro sobre uma inscrição de Revolução.

Quanto a eu ter sido anarquista no passado, não me aventuro a definir a coincidência como acaso. Quanto ao amarelo ser a cor do intelecto, admiro a sintonia. Quanto à aspereza, ela se transmuda em fragrância no primeiro lance da escada.

terça-feira, 8 de junho de 2010

Cinco anos, México

Gosto de copas. Sempre gostei. A primeira de que me lembro é a de 1986, no México. Eu me encantava com o meu primeiro álbum de figurinhas, que, com umas poucas oito ou dez páginas, exibia fotos das seleções, naquela pose clássica de alguns em pé e outros agachados, e destacava os principais jogadores da época, uns dez ou doze nomes que apareciam com seus rostos e camisas. Lembro-me de uns dois ou três alemães (na época, alemães ocidentais), um paraguaio, talvez um argentino (me escapa agora a memória), ingleses, franceses, italianos, e o que mais me marcou foi a de um polonês. Se me lembro bem, a foto dele era peculiarmente estranha, o pescoço parecia estar descolado do corpo, com a cabeça pendendo para a esquerda. Ela me dava arrepios. Lembro-me do Irã nessa copa. Não, acho que na verdade do Iraque. E tinha a guerra Irã-Iraque na época. Saddam era coleguinha dos Estados Unidos. Mas o que mais me lembro nessa copa é a França. Eu, um moleque de cinco anos, insanamente enraivecido, logo após a derrota nas quartas de final, apanhei uma caneta (numa ironia amarga, de tinta azul) e risquei a figurinha do amaldiçoado Platini, o maestro do time francês. O álbum se perdeu por aí. A lembrança, não.