N'água e na pedra amor deixa gravados
seus hieróglifos e mensagens, suas
verdades mais secretas e mais nuas.

"Entre o ser e as coisas"
Carlos Drummond
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terça-feira, 3 de janeiro de 2017

Asa

Você é como alguém que morreu em mim
e me deixou flores.

Você passou, embora ainda viva,
inscrevendo no espelho da minha lembrança
o seu inelutável e sublime contorno.

Não te contemplo como antes,
mas em horas terríveis
você aparece e me apazigua
como se nunca houvesse ido.

Você não é mais uma algema.

É um furo de sol em meio às nuvens,
despontando inusitadamente
em dias obscuros e gelados.

Você é alguém que nasceu em mim
e brotou como uma asa.

quinta-feira, 30 de junho de 2016

A retomada


A colmeia invadida oscila.

As vespas, atordoadas
e febris, zunem
sob o ataque imprevisto,
enquanto o visco
amarelo e preto
se derrete sobre o chão.

As abelhas se reúnem
nos arredores, enquanto
operárias corajosas
penetram o cerne
da fortaleza, abrindo
vias para as companheiras
de cores natas e sãs.

O ar infestado vai dando lugar
ao cheiro de mel, enquanto
o barulho do ocaso
prenuncia a sonoridade
da conquistada manhã.

sábado, 7 de maio de 2016

O reino das miopias

Neste reino incompreendido,
todos os espaços são distantes.

No chão torto que pisamos,
prisioneiro da névoa,
oscilam olhos frágeis
que erram na busca
e tudo o que encontram
são figuras de Monet.

Contentem-se, olhos desprovidos,
com a acuidade que lhes foi concedida,
guardem a humildade de suas restrições.

Aproveitem que,
no reino das miopias,
os olhos podem se tornar
mãos estendidas em dádiva,
e a dádiva é tudo o que portarão.

Olhos cerrados
arranham as pestanas
e inflamam as palmas,
escapam do erro
caindo no nada.

Deleitem-se
na visão imperfeita,
nos dedos a florescer,
nas peles que se tocam
e não se penetram.

Neste reino,
desdenhar a miopia
é ser cego no despenhadeiro.

sábado, 30 de abril de 2016

Atravessar o vazio

A beleza,
inventário das experiências,
se ergue, se curva e me bate,
como um tapa num rosto sonolento,
com a força dos recém-nascidos.

É esquivo o norte
no atalho mal iluminado
do solo da ilusão.

Com passos bambos,
na relutante vivência
da excruciante contradição,
avisto as peles que se tocam
e jamais se atravessam.

Sem poder escapar
da penosa dualidade,
elas se desviram e desdobram,
sem apoio e sem efeito,
só lhes restando consolar-se
no espaço entre duas visões.

segunda-feira, 25 de abril de 2016

domingo, 7 de fevereiro de 2016

Movimento em pelo

Ele se evade pelos poros
e fendas dos dedos mínimas,
como o rio que se atira
e abala, em respingos alados,
o poço plácido e quieto,
irrompendo um novo curso.

Não é próprio
da fúria de sua fluência
estorvar-se nos diques
de rotas e arrefecimentos.

Nele não sobrevivem líquens,
seu fluxo é pesado
como o tempo que tudo carrega
em seu dorso nu,
capturando e devolvendo,
absorvendo e decantando.

Sua fonte é segredo do terreno,
sua única posse é o movimento.

quarta-feira, 20 de janeiro de 2016

Presente

Ela aprende a se doar
sem correr o risco de pertencer,
pois o tempo do pertencimento passou.

Ela agora pertence a si mesma
e ao dom que experimenta e reverencia
na arcada do céu e nos cânions,
rio-via de raios infinitos.

segunda-feira, 11 de janeiro de 2016

A esperança é uma rebeldia

Diante do quadro pouco hospitaleiro
que se desenha áspero aos nossos olhos
e nos envolve como uma crisálida opressora,
a esperança é uma rebeldia,
resistindo com força dilacerada,
e por isso não plena,
atravessada pelo cenário inclemente
da ferida universal.

Sejamos rebeldes,
com o peito furado,
avançando rumo ao fogo cruzado
com o escudo da paz,
alvejando fraternidade e
desafiando, com gestos de afeto,
a desolação que se quer vencedora.

quinta-feira, 31 de dezembro de 2015

Planto ao redor estas sementes

Eu vejo acolhimento e hospitalidade.
Eu vejo compartilhamento e distribuição.
Eu vejo cordialidade genuína.
Eu vejo o estabelecimento da paz.
Eu vejo justiça e restituição.
Eu vejo o bem na liderança.

Eu vejo a fraternidade universal.

Eu alcanço,
dentre a miríade dos fatos,
a luz que teimosamente
se intromete no breu.

Não fujo da floresta incendiada;
tento ser como o beija-flor
de Wangari Maathai,
vivendo a esperança como quem,
num vai e vem, busca as gotas no rio
e as deixa pingar nas folhas crestadas.

quarta-feira, 9 de dezembro de 2015

Tradução

A verdade é um diamante impolido
de infinitas faces espelhadas.

Há que dar-lhe a volta
para traduzir sua totalidade evasiva
e seus reflexos glamorosos.

(cada giro, novas imagens)

Tradutores se diferenciam;
algo se perde.

Não há como penetrar o diamante
sem o quebrar

ou abarcar a simultaneidade
de seu volátil deslumbramento.


. Tributo ao depoimento de José Saramago no filme Janela da Alma.

terça-feira, 1 de setembro de 2015

O leme roto dos meus passos

O amor é como andar num lago congelado, cuja superfície nunca se sabe se vai se estilhaçar sob os seus pés. A sua entrega é como um sol que se aproxima e te arde, te enche de vida e de espasmos, sobressaltos no chão que se grudava aos seus pés e começa a escorregar, a transpirar, fica mais fino, refletindo como o gume afiado de um punhal essa luz que cega e desnorteia. Eu dou um passo, qualquer passo, mas não alcanço as margens, sequer as vejo, é tudo clarão e sol e gelo derretendo.

Mas nada disso parece importar ao meu amor. É como se suas solas fossem mais frias do que o cume das montanhas, regelando sem medo o que pisa, tudo abaixo de suas pernas solidez e espessura. É como se o que me separasse do fundo daquelas águas fossem somente suas mãos ásperas que me seguram como garras a uma presa. Eu não quero mais deslizar nesse arremedo de solo, girando desgovernada a confiar em braços que podem não ter tanta força assim, tanto fôlego assim. Nunca reparei se eles são torneados. Os seus dedos são leves e obstruem a percepção de qualquer traço de intumescimento, ainda que poderosamente comandem os meus poros rendidos. É desse poder que preciso fugir, é dessa mescla de gelo e sol que subtrai todas as certezas, é desse ardil de um deslumbramento  que me deixa a todo o tempo suspensa e sem aprumo.

É se afastando do abismo que irá atravessá-lo? Não confia na confecção de suas próprias redes? Esse chão não precisa ser gelo e esse sol não precisa incinerar o coração dos seus alicerces. Você é o seu próprio solo, e o seu material pode ser temperado como o aço da siderurgia mais pura.

Eu não possuo o segredo dos metais, nem o sangue dos viadutos. O sol sobre o meu corpo é o mesmo que queima o rosto dos vampiros, meu gelo é o da temperatura que pulsa no limite da fusão. Suas palavras se chocam com o meu entendimento, seu tom sincero não penetra as veias do meu otimismo moribundo. Dele só restam artérias que se rasgam em fendas, tingindo a pele de um vermelho que se desbota como a palidez crescente do meu peito em seu compasso lento.

Eu vejo cor e movimento em seus condutos expostos, névoa imprópria entre suas pálpebras e um colar de espinhos que se descola de sua garganta a cada grito baixo com que destila a sua angústia. Se mirasse num espelho limpo suas feições no fluir dos desabafos, observaria a tez corando e olheiras se desvanecendo, ainda que a sutileza das alterações não registrassem na vista qualquer diferença. O meu olhar e a minha escuta são esse espelho, sua presença e fala vigorosa a sua mirada. Não fujamos desse lago e do desafio de suas águas. Sejamos nautas de nossos próprios barcos, construídos com paciência e esmero na companhia do tempo elaborado, feito amigo na intimidade da confidência.

Os remos se esquivam do aperto de minhas mãos, que clamam bandagens para as linhas retorcidas de suas palmas. Os ventos se alternam entre tornados e calmarias totais, numa instabilidade misteriosa que ultrapassa qualquer meteorologia. Não sei se esta jangada sustentará a carga das minhas obscuridades, mas ofereço, no limite das minhas forças, o leme roto dos meus passos à travessia de linguagem a que nos lançamos.

sexta-feira, 28 de agosto de 2015

O cálculo do fim

Há algum tempo
que, vendo números,
vejo pessoas.

Não são os números
enumerando as pessoas,
são as pessoas
humanizando os números.

Alguns números
procuro em toda parte,
por serem os seus números.

Mas fatigado
por ver apenas os números,
e não você,
quero retirar deles a humanidade
que lhes conferi,
quero renumerificá-los.

Ao ver um seis,
um onze, um quinze,
um dezessete ou um vinte e seis,

quero ver um seis,
um onze, um quinze,
um dezessete e um vinte seis,

ao invés de ver você,
como vejo agora.

Não quero te ver
quando olho as horas,
quando mudo de canal,
quando aumento o volume
do aparelho de som,
quando mudo de faixa
ao ouvir um álbum,

ainda que na música
eu te ouça cantarolar,
que seja um filme impregnado
de nossos risos e lágrimas,
ou que eu vá pra casa
sempre naquele mesmo horário.

Quero chegar logo
ao dia em que um número
será somente um número,
e para isso, já que humanos
se tornaram, preciso,
como se assassino fosse,
desumanamente matá-los.

Os números, para mim,
serão cadáveres,
transformados em cinza,
jarros frios
carregando apenas
um rastro irreconhecível
de uma humanidade
que, fora de mim,
nunca lhes pertenceu.

Talvez o seu rosto,
descolado dos números,
possa ser, ao contrário,
numerificado,
neutralizado, esfriado
como uma série de cálculos,
de subtrações e divisões
que reduzam ao nada
o infinito que você
me parecia.

Esse é um peso
que está além do poder
dos números,
mesmo os genuínos,
desumanizados,
números, mesmo.

Esse é um peso
que pertence a quem,
num enlevo inadvertido,
os humanizou.

Não te verei
ao olhar as horas,
ao mudar de canal,
ao aumentar o volume
do aparelho de som
ou ao mudar a faixa do álbum,

e, à medida que os números
das horas e dos dias
se sucederem, se repetirem
no compasso que segue indiferente
à humanidade que lhes atribuí,

o seu rosto se desvanecerá,
como a tinta perecível e falha
com que agora,
num arremedo de matemática,
calculo este fim.

sexta-feira, 21 de agosto de 2015

A dor de uma pedra

Um diamante não polido
é uma pedra.

Mas, acima de tudo,
um diamante não polido
é um diamante não polido.

Chamar de pedra
um diamante não polido
é perder a riqueza
de um diamante não polido.

Assim é com o calcário,
o quartzo e a esmeralda,
e qualquer substância
que se chama de pedra,

pois um calcário é mais que uma pedra,
um quartzo é mais que uma pedra,
uma esmeralda é mais que uma pedra,

e é também mais do que
calcário, quartzo e esmeralda.

Que dor é para uma pedra,
qualquer pedra,
ser chamada de pedra.

O que uma pedra é
não cabe no que é ser pedra.

O que uma pedra é
é o que uma pedra é.

domingo, 31 de maio de 2015

terça-feira, 5 de maio de 2015

O sopro úmido de um bálsamo

Soprarei as crateras da sua pele,
como uma brisa tão úmida e afável,
que a quentura do ardor excessivo
arrefecerá, como efusão de gotas
a dissolver, curando a sede ingrata
de olhos há muito tempo enrugados.

Um alívio brando emanará dos poros
das mais mínimas dores, costurando,
como pontos, o coração dos anseios,
tecendo, com linhas vivas e frescas,
sob o comando das mãos renovadas,
a pavimentação, em amena temperatura,
das mais agrestes veias e afeições.

domingo, 26 de abril de 2015

O balanço das águas

Você pode,
com a potência da sua fala,
quebrar as águas
da mais sólida confiança.

Somente pulsando
com a sabedoria colhida
no resgate de sua essência,
regada por gratuita afeição,
num parto feliz emergindo
de fecundas profundezas,

o risco da força demandando
a disciplina da ponderação
a submeter todos os anseios,

será fiel à qualidade
de guardiã da inteireza dos seres,
vibrando no âmago das aspirações,
a estabelecer e preservar
o exigente e delicado balanço
de intensidade e comedimento.

quinta-feira, 16 de abril de 2015

As asas da pétala

Como uma pétala que só se deve olhar,
você emana a beleza inviolável
que se deixa colher, somente,
pelo jardineiro mais leve e sem apego.

A pétala só à flor pertence;
ainda que colhida numa permissão
generosa, o pólen, com suas asas,
foge sempre, em enlace com o vento.

Seu destino é fecundar,
nas mais longas distâncias,
gerando plenitude de harmonias
e de cores, riqueza gratuita
espargindo, em todos os cantos,
sua alma suave, perfumada,
de força gentil e majestosa.

segunda-feira, 13 de abril de 2015

Um lençol de seda

I

A um palmo de distância
seus olhos quase se encontram.

Os movimentos tolhidos
por suas próprias correntes,
contemplam imagens guardadas
nas cavidades mais íntimas.

II

A areia escorre na ampulheta.

O ensaio se findando,
o palco de luzes espera
a presença do ser;
ao primeiro ruído da tábua
o pano se desata.

terça-feira, 31 de março de 2015

A depuração da brisa

Ela sopra, oculta e nua,
ideias sábias e gentis,
a revolverem-se no concerto
dos sons, em estado bruto,
entornando-se em ouvidos
alertas a qualquer distorção.

Eles acolhem suas asas,
maviosa, submetendo-a
ao engenho da compreensão,
tomando conta do corpo
a absorver a voz sussurrada,
tão forte por ser tão sutil.

domingo, 22 de março de 2015

A tocha

Percebo, observando os meandros
do meu discurso, as lacunas
de sentido em que a ofensa,
involuntária e ardilosa, se infiltra.

Empenho-me na busca das palavras
que melhor representem as considerações
que cultivo, imergindo-as no tato
que se desloca de qualquer ferida.

Falar é um salto no abismo
dos entendimentos; quero ser
uma tocha que ilumina a interpretação
e queima a farpa mais escondida.