N'água e na pedra amor deixa gravados
seus hieróglifos e mensagens, suas
verdades mais secretas e mais nuas.

"Entre o ser e as coisas"
Carlos Drummond
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sábado, 7 de maio de 2016

O reino das miopias

Neste reino incompreendido,
todos os espaços são distantes.

No chão torto que pisamos,
prisioneiro da névoa,
oscilam olhos frágeis
que erram na busca
e tudo o que encontram
são figuras de Monet.

Contentem-se, olhos desprovidos,
com a acuidade que lhes foi concedida,
guardem a humildade de suas restrições.

Aproveitem que,
no reino das miopias,
os olhos podem se tornar
mãos estendidas em dádiva,
e a dádiva é tudo o que portarão.

Olhos cerrados
arranham as pestanas
e inflamam as palmas,
escapam do erro
caindo no nada.

Deleitem-se
na visão imperfeita,
nos dedos a florescer,
nas peles que se tocam
e não se penetram.

Neste reino,
desdenhar a miopia
é ser cego no despenhadeiro.

sábado, 30 de abril de 2016

Atravessar o vazio

A beleza,
inventário das experiências,
se ergue, se curva e me bate,
como um tapa num rosto sonolento,
com a força dos recém-nascidos.

É esquivo o norte
no atalho mal iluminado
do solo da ilusão.

Com passos bambos,
na relutante vivência
da excruciante contradição,
avisto as peles que se tocam
e jamais se atravessam.

Sem poder escapar
da penosa dualidade,
elas se desviram e desdobram,
sem apoio e sem efeito,
só lhes restando consolar-se
no espaço entre duas visões.

domingo, 7 de fevereiro de 2016

Movimento em pelo

Ele se evade pelos poros
e fendas dos dedos mínimas,
como o rio que se atira
e abala, em respingos alados,
o poço plácido e quieto,
irrompendo um novo curso.

Não é próprio
da fúria de sua fluência
estorvar-se nos diques
de rotas e arrefecimentos.

Nele não sobrevivem líquens,
seu fluxo é pesado
como o tempo que tudo carrega
em seu dorso nu,
capturando e devolvendo,
absorvendo e decantando.

Sua fonte é segredo do terreno,
sua única posse é o movimento.

quarta-feira, 20 de janeiro de 2016

Presente

Ela aprende a se doar
sem correr o risco de pertencer,
pois o tempo do pertencimento passou.

Ela agora pertence a si mesma
e ao dom que experimenta e reverencia
na arcada do céu e nos cânions,
rio-via de raios infinitos.

terça-feira, 1 de setembro de 2015

O leme roto dos meus passos

O amor é como andar num lago congelado, cuja superfície nunca se sabe se vai se estilhaçar sob os seus pés. A sua entrega é como um sol que se aproxima e te arde, te enche de vida e de espasmos, sobressaltos no chão que se grudava aos seus pés e começa a escorregar, a transpirar, fica mais fino, refletindo como o gume afiado de um punhal essa luz que cega e desnorteia. Eu dou um passo, qualquer passo, mas não alcanço as margens, sequer as vejo, é tudo clarão e sol e gelo derretendo.

Mas nada disso parece importar ao meu amor. É como se suas solas fossem mais frias do que o cume das montanhas, regelando sem medo o que pisa, tudo abaixo de suas pernas solidez e espessura. É como se o que me separasse do fundo daquelas águas fossem somente suas mãos ásperas que me seguram como garras a uma presa. Eu não quero mais deslizar nesse arremedo de solo, girando desgovernada a confiar em braços que podem não ter tanta força assim, tanto fôlego assim. Nunca reparei se eles são torneados. Os seus dedos são leves e obstruem a percepção de qualquer traço de intumescimento, ainda que poderosamente comandem os meus poros rendidos. É desse poder que preciso fugir, é dessa mescla de gelo e sol que subtrai todas as certezas, é desse ardil de um deslumbramento  que me deixa a todo o tempo suspensa e sem aprumo.

É se afastando do abismo que irá atravessá-lo? Não confia na confecção de suas próprias redes? Esse chão não precisa ser gelo e esse sol não precisa incinerar o coração dos seus alicerces. Você é o seu próprio solo, e o seu material pode ser temperado como o aço da siderurgia mais pura.

Eu não possuo o segredo dos metais, nem o sangue dos viadutos. O sol sobre o meu corpo é o mesmo que queima o rosto dos vampiros, meu gelo é o da temperatura que pulsa no limite da fusão. Suas palavras se chocam com o meu entendimento, seu tom sincero não penetra as veias do meu otimismo moribundo. Dele só restam artérias que se rasgam em fendas, tingindo a pele de um vermelho que se desbota como a palidez crescente do meu peito em seu compasso lento.

Eu vejo cor e movimento em seus condutos expostos, névoa imprópria entre suas pálpebras e um colar de espinhos que se descola de sua garganta a cada grito baixo com que destila a sua angústia. Se mirasse num espelho limpo suas feições no fluir dos desabafos, observaria a tez corando e olheiras se desvanecendo, ainda que a sutileza das alterações não registrassem na vista qualquer diferença. O meu olhar e a minha escuta são esse espelho, sua presença e fala vigorosa a sua mirada. Não fujamos desse lago e do desafio de suas águas. Sejamos nautas de nossos próprios barcos, construídos com paciência e esmero na companhia do tempo elaborado, feito amigo na intimidade da confidência.

Os remos se esquivam do aperto de minhas mãos, que clamam bandagens para as linhas retorcidas de suas palmas. Os ventos se alternam entre tornados e calmarias totais, numa instabilidade misteriosa que ultrapassa qualquer meteorologia. Não sei se esta jangada sustentará a carga das minhas obscuridades, mas ofereço, no limite das minhas forças, o leme roto dos meus passos à travessia de linguagem a que nos lançamos.

sexta-feira, 28 de agosto de 2015

O cálculo do fim

Há algum tempo
que, vendo números,
vejo pessoas.

Não são os números
enumerando as pessoas,
são as pessoas
humanizando os números.

Alguns números
procuro em toda parte,
por serem os seus números.

Mas fatigado
por ver apenas os números,
e não você,
quero retirar deles a humanidade
que lhes conferi,
quero renumerificá-los.

Ao ver um seis,
um onze, um quinze,
um dezessete ou um vinte e seis,

quero ver um seis,
um onze, um quinze,
um dezessete e um vinte seis,

ao invés de ver você,
como vejo agora.

Não quero te ver
quando olho as horas,
quando mudo de canal,
quando aumento o volume
do aparelho de som,
quando mudo de faixa
ao ouvir um álbum,

ainda que na música
eu te ouça cantarolar,
que seja um filme impregnado
de nossos risos e lágrimas,
ou que eu vá pra casa
sempre naquele mesmo horário.

Quero chegar logo
ao dia em que um número
será somente um número,
e para isso, já que humanos
se tornaram, preciso,
como se assassino fosse,
desumanamente matá-los.

Os números, para mim,
serão cadáveres,
transformados em cinza,
jarros frios
carregando apenas
um rastro irreconhecível
de uma humanidade
que, fora de mim,
nunca lhes pertenceu.

Talvez o seu rosto,
descolado dos números,
possa ser, ao contrário,
numerificado,
neutralizado, esfriado
como uma série de cálculos,
de subtrações e divisões
que reduzam ao nada
o infinito que você
me parecia.

Esse é um peso
que está além do poder
dos números,
mesmo os genuínos,
desumanizados,
números, mesmo.

Esse é um peso
que pertence a quem,
num enlevo inadvertido,
os humanizou.

Não te verei
ao olhar as horas,
ao mudar de canal,
ao aumentar o volume
do aparelho de som
ou ao mudar a faixa do álbum,

e, à medida que os números
das horas e dos dias
se sucederem, se repetirem
no compasso que segue indiferente
à humanidade que lhes atribuí,

o seu rosto se desvanecerá,
como a tinta perecível e falha
com que agora,
num arremedo de matemática,
calculo este fim.

quinta-feira, 16 de abril de 2015

As asas da pétala

Como uma pétala que só se deve olhar,
você emana a beleza inviolável
que se deixa colher, somente,
pelo jardineiro mais leve e sem apego.

A pétala só à flor pertence;
ainda que colhida numa permissão
generosa, o pólen, com suas asas,
foge sempre, em enlace com o vento.

Seu destino é fecundar,
nas mais longas distâncias,
gerando plenitude de harmonias
e de cores, riqueza gratuita
espargindo, em todos os cantos,
sua alma suave, perfumada,
de força gentil e majestosa.

segunda-feira, 24 de novembro de 2014

O encantamento da segurança

Na primeira vez em que o senti em mim,
soube que poderia ser segura junto a ele.

E tive medo.

Tive medo da segurança 
jamais antes experimentada,
sequer nomeada,
tive medo
porque ela parecia tão próxima,
à revelia de qualquer precaução.

Tive medo porque me permitia
fazer-me indefesa junto a ele,
tive medo porque um movimento
mais brusco seu me partiria.

Meu coração palpitava sem ritmo,
cindida que estava, entre a segurança
com que sua presença me envolvia
e o rastro do passado que me impregnava.

Tantos arranhões e tantas lágrimas
para emancipar-me de todas as
correspondências,
e novamente o abismo defrontado.

O abismo do seu abraço,
do largar-se em seus sentimentos,
tão sem certezas,
tão próprio do reino das apostas,
intangível e involuntariamente esquivo
em sua sedução espontânea
e livre de qualquer alarde.

E, no entanto,
condensando em seu seio
a expectativa da incondicionalidade
e do irredutível desejo de abrigar
todas as dores,
gotejando na hora exata
o bálsamo do afeto,
ele desafiava minhas vitórias.

E é por elas
que me faço fiel à audácia
da minha regeneração.

Derramo em seu peito a força
das minhas vulnerabilidades,
ponho em xeque
a potência dos seus alicerces,
abro-me à chance da queda
ou da segurança
com que desde o primeiro instante
ele me encantou.

sábado, 22 de novembro de 2014

O alvo e suas brechas

Eu me dedico à arte da flecha e do arco, adestrando-me, com primor de aprendiz, no manuseio e na mira, e, sobretudo, no tempo.

O tempo veloz ou lento do alvo, a natureza da flecha, sua cor e seu brilho, força interna ou sutileza de toque, estrondoso ou despercebido.

Não se trata de sangrar a caça, a não ser o sangue assombroso do combustível da vida; no coração atingido, impulso renovado fluindo.

Respeitando a solidez e o ritmo de sua quentura, o fogo se aproxima a cada brecha, a estrada a cada vez segura e protegida.

Pois o arco é ciente de suas lâminas, enverga o vento e dilui a tempestade, abre as cores entre nuvens, liberta todos os matizes.

E o alvo se deita, numa plácida entrega, coberto por lua em céu veludoso, mãos ávidas descansando no silêncio do preparo.

sexta-feira, 14 de novembro de 2014

O verdadeiro amor só acontece entre duas felicidades que se tocam.
Eu não toco o que em você é infeliz. Eu toco a felicidade que existe, mesmo se escondida aquém ou além da consciência, vibrando em seu interior. E então, num movimento sutil e delicado, resgato-a como quem recupera e revigora uma Beleza, e a ofereço a você como um presente singelo.

domingo, 28 de setembro de 2014

Mulher sentada num banco de praça,
emoldurada por fontes, olhar no vazio


O fotograma vivo no espelho dos meus olhos,
abandonado no vento, obliquamente me fere.

Sussurra-me promessas, aventa um tempo sustado –
não me engana já, nasce e perece de uma vez
seduzindo por puro deleite, espirituoso e incompleto,
rastro de sutilezas e impressões desmanchando.

Meus pés se moldariam em correntes –
não alcançarei em momento ou posto
esta mulher que chamo de minha
numa solução inadequada e manca.

Não possuo o que me foge no instante,
não possuo o perene escape, não possuo o jamais.

Possuir é verbo inconjugável.

Persigo ainda o seu olhar que nada vê e tudo cria,
perco agora e perco sempre sem ter tido embora.

Escarvo o que não sei se virá, inquieto poema em pele –
não capturo a silhueta do que imprecisamente vejo,
não concluo, nada me obedece no concerto de formas.

Amparo-me no incerto que é solitária certeza,
cedo e me entrego em favor da imersão –
celebro o que não se curva ao meu pincel.

Você se esvai em melodia agora, você se vira e me olha,
na candura do sorriso desenha um lembrete do seu desdém.

domingo, 18 de maio de 2014

Perséfone, rainha do Hades

Bela Perséfone, a mais bela das belas, flutuando no ensolarado jardim de narcisos, seu perfume embriaga meus sentidos; não posso senão possuí-lá, descê-la em seu frescor à minha obscura morada; será ali o novo lar dos seus encantos.


Linda e solar, venho arrebatar-te, Perséfone, como você me arrebatou; vamos em minha carruagem de fogo negro, pois já te esperam, rainha, em minha morada; não tardemos, que o pranto ofuscante da terra se aproxima.

 
Sim, bela Perséfone, sua mãe te procura, e não tardará a vê-la; aconchegue-se, por agora, sob o meu rubro firmamento, e receba este fruto, pois aqui, também, se conhece a fartura; morda a sua macia carne, saboreie o tenro agridoce de sua polpa lauta e suculenta.

Faço como me pedes, pois a doçura dos teus olhos negros acaricia-me com a leveza de um estremecimento; surpreendeste-me, num habilidoso movimento, deixando-me, temporariamente, sem escolha; agora, voluntariamente, regozijo-me neste sublime alimento, abrigada no sombreado escarlate de teu afetuoso acolhimento.

 
Não posso voltar, mãe amada, apoderei-me da paixão e encontrei meu novo lar, tornando-me rainha de um obscuro solo; acolherei com minhas suaves asas os viajantes do falecimento, trépidos ou bravos, encaminhando as almas ao destino de seus méritos; a delicadeza da primavera não é já para mim, tenho missão mais sóbria; as lágrimas e anseios dos perdidos serão as sementes de minha lavoura agora.

Querida mãe, o pranto da distância entre nós tornou-se um transbordante poço de anseios; as águas de meu desejo inundaram nossos domínios, pondo em risco a ordem e os passos de suas sombras peregrinas; só me restou, malgrado as súplicas de meu marido amado, estabelecer com ele um doloroso pacto; aqui serei rainha, nem sempre presente, todavia; uma vez ao ano irromperei, como uma fonte cristalina, portando a luz do amor e da saudade, para derramar contigo, sobre a terra, em claras estações, o suave calor de nosso afeto acumulado; em alegria, com todos os seres que respiram, compartilharemos nossa doçura, premiando o labor dos homens bravos e o desvelo das mulheres fecundas.

sábado, 26 de abril de 2014

Um poço para sua beleza

Ela quer desvelar sua alma à realidade etérea, sutil, no limite de qualquer substância; plantar, umedecendo a terra com sua fatia mais densa (água, de tão transparente, invisível), no fundo da distância exata, falando à semente como se aborda um infante, ondulando cantigas de embalar e seduzir, com a paciência deleitosa do lavrador temperado nos ciclos de noite e dia, impregnando cada palavra com a discreta força de um recomeço tingido de luta, conduzindo-se à dura beleza conquistada em meio a vacilos (ah, o tempo presto cobra o justo pedágio); ela quer se encontrar e verter o seu mais íntimo através do duto mais claro, que, rebelde a suas esperas, se faz opaco e rugoso; o poço em que se dobra a sua torrente, numa cachoeira a reluzir nuas verdades, não lhe parece acolher com a segurança de um chão que sustente e floresça, algas estranhas moldando-se em pedras rasas, ameaçando o equilíbrio de mergulhos parecendo interditos como escorregadias intempéries; as águas valentes caem, no entanto, o que era escasso transmudando em profundezas, plenitude de vida submersa que ela procurava quase às cegas, insciente da maravilha inscrita em suas próprias premonições; manancial abundante e vivo, entre curvas de troncos e raízes retomando a forma potente de um regato, renovado perenemente nas fontes da bela e sublime imagem; ela encontra o seu traço, descendo a colina sob as sombras de árvores altas e frondosas, ela escolhe enfim o seu poço, num mergulho se despe em delicadeza que a envolve na inesperada entrega.

sexta-feira, 21 de fevereiro de 2014

Eu te dei adeus
mas você não ouviu.

O seu adeus
já fora dado
sem dar conta.

O adeus que te dei
agora
é o meu adeus,
concreto e abrupto,
flutuando
nos meus olhos,
nítido como gume
na bruma do seu adeus
já diluído.
Quero que você fique bem.
Longe de mim.
Não bem longe de mim.
Bem.
Mas longe de mim.

segunda-feira, 10 de fevereiro de 2014

Carrego em mim um mundo que não conheço. Tudo está em mim sem que eu possa concebê-lo. Tenho olhos que alcançam o horizonte, depois dele tenho os olhos dentro de mim. Não invejo a onisciência. Prefiro a cada passo o gosto de um novo momento. Tudo que está em mim e ainda não vivi. Quero olhar uma poça de sangue e ver a morte e enxergar beleza. Quero olhar uma poça de sangue e ver a vida e ferir acordes. Vejo você como uma outra vereda para o mesmo mundo que porto. O mesmo mundo em cada partícula de cada corpo. O mesmo mundo que ninguém concebe. Estar no mundo e não sê-lo, tê-lo em si e não ser senão um caminho. Mostre-me o seu chão, quero percorrê-lo com meus pés sujos de tempo. Entro na sua versão do mundo e vivo uma outra, além da que era sua e da que me pertencia. Carrego o mesmo mundo perpassado por mim e por você. O mesmo mundo nunca o mesmo para mim e para você.

sábado, 28 de dezembro de 2013

DR

Ela já me esperava quando despontei na calçada do bar. Seu rosto fechado denotava a mesma ambiguidade e eu me cansava daquilo. “E então?” Ela me resvalou com um olhar trêmulo, como se deparasse um espírito em súbita materialização. “Eu não quero falar disso. Vamos sair daqui.” O trajeto para o motel de sempre (no começo eram muitos) parecia carente de um mínimo sopro de sua presença. Ela se perdia ao meu lado, desaparecendo nas nuances de sua inexorável abstração, e eu, por minha vez, me desnorteava percorrendo atalhos que jamais conduziam a ela.

Entrando na suíte, ela tirou a roupa e se deitou. “Só quero ficar pelada do seu lado. Deita comigo.” Mais um de seus caprichos. Tirei a roupa, nos cobrimos com o lençol de seda e ela pousou seu rosto no meu peito, me enlaçando com aquele perfume que me inebriava. Maldito perfume. Eu até me conformava de não transar só por causa dele. O problema é que fazia tempo demais. Perfume algum bastaria para manter-nos juntos assim. “Você precisa ir ao doutor.” Ela deu um suspiro, cheirou meu pescoço e me beijou. “Eu não consigo ligar. Você liga pra mim?” Após tanto tempo, um sorriso simultâneo entre nós. Acariciei-lhe as lágrimas com a ponta dos dedos, meditando em como uma consulta médica pode ser capaz de dar esperança a uma relação.

segunda-feira, 9 de dezembro de 2013

...finjo não acreditar nas palavras que colho da sua boca em flor etérea, melodias resvalando o quase da borda dos meus tímpanos; num ilusionismo barato e sem efeito, deleito-me no fantasma do seu olhar terno a recitar versos de amor. Como Marcel, educo-me nas neblinas solertes do que há pouco me escondia: o que lhe atribuo, num assédio de resfôlego e desrazão, jamais virá-me de você, e assim me desespero. Espera ingrata seria, furor desmedido arrebatando todos os dedos e as solas dos meus pés, não restaria derme, tudo de que me visto desfazendo-se em poeira que secretasse de cavidades agonizando. Não foi a sua voz, que primeiro de tudo ouvi, não o rosto, não o acanhado corpo a velar tanto viço e tanto fogo; foi a música, foi você me esperando, foi a face pressentida do seu aguardo na plateia, figuração estrangeira de um baixo-relevo que me vive ainda. Foi a separação. O adeus estampado nas fibras resolutas das suas lágrimas, o olhar dançando como ventania no horizonte, maldito longe desabando certeiro sobre o tênue cristal dos nossos dedos enredados. O vermelho do que pulsa e do que dói, do que dá a vida ou a destrói, os rastros viscosos das antigas carícias de cetim, dissimulados pela areia espessa da juventude que se esvai, súbito revolvem meus órgãos transbordando nos olhos que não te veem mais: rio sinuoso a marulhar no oceano escuro do esquecimento que reluta em vingar. Escapo-me de remates, não me despeço agora do que ensaio na cratera da sua eterna passagem: amanhã é noite sem lua, esparramo a falta no próximo céu distante e claro...

sábado, 12 de outubro de 2013

O silêncio
como resposta

na brisa cálida
da espera

arrepiando
como dedos

que no segredo
da distância

colhendo mirra
quase tocam.