Márcia acordou faminta. Nada na despensa. No supermercado, um infante de dois ou três anos a mirava pensativo. Ela lhe sorriu. No trabalho, discutiu com um colega sobre um traço. Sua amiga lamuriava agruras sentimentais, ao tomarem limonada. O telejornal alvejava acidentes e assassinatos. Adormeceu no meio de uma sitcom e sonhou com uma parede.
Márcia acordou faminta. Foi à loja de ferragens e pagou por um martelo. O maior que pôde encontrar.
N'água e na pedra amor deixa gravados
seus hieróglifos e mensagens, suas
verdades mais secretas e mais nuas.
"Entre o ser e as coisas"
Carlos Drummond
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segunda-feira, 11 de fevereiro de 2013
sábado, 2 de fevereiro de 2013
Os sentidos do vento palpável
“É ótimo ser espírito e testemunhar por toda a eternidade apenas o lado espiritual das pessoas. Mas, às vezes, me canso dessa existência etérea. Não quero pairar para sempre. Quero sentir um certo peso, que ponha fim à falta de limite e me prenda ao chão. Eu gostaria de poder dizer ‘agora’ a cada passo, a cada rajada de vento. ‘Agora’ e não mais ‘para sempre’ e ‘eternamente’.”
- Asas do Desejo, Wim Wenders (1987)
Um mergulho no chão que elástico encrosta,
sangrando penas esgotadas,
numa consequência inversa emendando as pernas,
criando tendões e solas com detritos de asas
em cadência pulverizando farelos de cascas
como areia aderente fixando ideias no solo.
Esquecendo o inexorável movimento
de ventos alheios a qualquer controle
para carregar a densidade vácua das escolhas,
esquivando sem sucesso a incerteza
no escondido encanto da pretérita indiferença.
Encarno o não-saber saudando os limites do horizonte,
no momento as direções se abrem, imediatas
e presas a passos e saltos sem voo –
não enxergo no escuro e sinto sono,
ouço as cordas alvejadas do piano
que pesa e responde a meus dedos com acordes,
tudo me exige estudo,
dobro os joelhos e perco fôlego em escadas.
Não tenho nada além do agora
que foge e retorna a cada instante.
As brisas são carícias,
azul e amarelo se casam na aurora,
frutos exalam gostos,
nenhum silêncio abafa o respiro
da beleza que sem remorsos findará –
não pairo, piso gravidade
furando a terra e vertendo a vida mortal.
domingo, 13 de janeiro de 2013
A fluidez diáfana dos portais
Ela observava a caneta girando entre os dedos. Os ponteiros não se moviam. O ar se abafava aludindo anseio. Ao lado um homem mirava folhagens pela janela. Os aplicadores de colete amarelo piscavam o direito de perambular. Ouvia cada farfalhar de tecido, cada respiração mais funda, cada toque nervoso na madeira, com a clareza do silêncio mais limpo. Penetrava impávida na bifurcação suspensa do seu próprio tempo.
quinta-feira, 21 de junho de 2012
a romper os ardis do medo vão
me vejo às voltas
comigo mesmo
(habito uma prisão sem grades
sem correntes a ofuscar
a mobilidade
das articulações)
da fonte sem lugar
que pulsa sem cansaço
em mim
renovo os votos
da fidelidade mais crucial
(o amor não é mais que a vida
a vida é movimento
e sempre pede
doce ou austera
reservada ou sonora)
penso no que sinto
sinto o que penso
nas bordas da compreensão
e decido
(na velocidade da luz
que de dentro de mim
se solta
e de fora de mim
me penetra
ubíqua
e imperiosa)
tenho enfim chaves intangíveis
o segredo das ilusões
a pólvora do alerta
mancando ainda
atravesso o invisível
comigo mesmo
(habito uma prisão sem grades
sem correntes a ofuscar
a mobilidade
das articulações)
da fonte sem lugar
que pulsa sem cansaço
em mim
renovo os votos
da fidelidade mais crucial
(o amor não é mais que a vida
a vida é movimento
e sempre pede
doce ou austera
reservada ou sonora)
penso no que sinto
sinto o que penso
nas bordas da compreensão
e decido
(na velocidade da luz
que de dentro de mim
se solta
e de fora de mim
me penetra
ubíqua
e imperiosa)
tenho enfim chaves intangíveis
o segredo das ilusões
a pólvora do alerta
mancando ainda
atravesso o invisível
sábado, 9 de junho de 2012
As melodias não se rendem, laceradas ainda
Em uma noite prensada no intervalo de dois dias tensos, Lívia rezava sem convicção. A face de seu pai lhe aparecia como uma pintura, cravada no recesso das suas aspirações. O lago tremulante, refletindo as luzes do morro, lhe sugeria, através da janela e da escuridão, a flutuação inebriante no tom com que a chamava, ora apreensivo, tantas vezes vestido em camada áspera de desnorteamento, ora apático, perdido nas profundezas da sua alma, extraviada do próprio entendimento. A solidez da presença nua e pesada de seus últimos dias se tornava em cinzas diante do inexorável, o compasso surdo e seco do tempo assíduo. Água e sal desciam aos seus lábios, relembrando, à sua sensibilidade dormente, a perseverança rebelde do gosto sobre a insipidez indiferente das horas.
quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012
Fiel
Foi melhor assim, pensou Marisa enquanto abria o maço dos cigarros
que Joalvo não suportava. Arrancou o papel cinza que os envolvia e, por
força do hábito, aspirou profundamente o cheiro inebriante do tabaco.
Era tudo o que se permitia fazer desde que fundira ao dele o seu
endereço. Retirou um cigarro, colocando-o, com movimentos lentos, na
boca entreaberta, e, com o isqueiro antigo, que ganhara de outro homem,
num passado tão remoto que ela não conseguia ligar ao presente, acendeu a
ponta, sugando calculada, mas vigorosamente, a fumaça através do filtro
branco.
Viu os olhos dele. Olhos vivos e desolados, ao contato das suas palavras de despedida, do seu perfume agridoce, da sua face incólume. Não parecia haver restado traço algum do brilho úmido que tantas vezes havia gerado neles. Olhos secos. Agudos. Impotentes diante da resolução inabalável, consequência furtiva da ação de uma criatura dissolvente e imaterial que, sob relances míopes e tímidos, nascera às escondidas e ganhara aos poucos dimensões consideráveis, conduzida pelo balanço das vontades, tomando o leme de assalto e, num sopro mais forte que ameaçava revolver as águas, sussurrava aos seus ouvidos que era hora de aportar.
Uma lágrima escorreu solitária e se encontrou, na língua, com o cigarro, levando-a à ideia de uma inalação do fluido que é o símbolo e o resultado de uma emoção intensa e carregada de sentido. Quis a descida de mais uma, mas a serenidade já a dominava. Sem abandonar a beleza dos olhos de Joalvo, deu a última tragada.
Nunca mais o veria. Mas prometeu-se, como fidelidade ao enlevo sublime que a elevara sem enganos à face mais calma do deleite, que a arrebatara por todos aqueles anos, tão sutil e tão definido, tão inteiro e tão gratuito, a um só tempo contido e transbordante, jamais esquecer os seus olhos.
Viu os olhos dele. Olhos vivos e desolados, ao contato das suas palavras de despedida, do seu perfume agridoce, da sua face incólume. Não parecia haver restado traço algum do brilho úmido que tantas vezes havia gerado neles. Olhos secos. Agudos. Impotentes diante da resolução inabalável, consequência furtiva da ação de uma criatura dissolvente e imaterial que, sob relances míopes e tímidos, nascera às escondidas e ganhara aos poucos dimensões consideráveis, conduzida pelo balanço das vontades, tomando o leme de assalto e, num sopro mais forte que ameaçava revolver as águas, sussurrava aos seus ouvidos que era hora de aportar.
Uma lágrima escorreu solitária e se encontrou, na língua, com o cigarro, levando-a à ideia de uma inalação do fluido que é o símbolo e o resultado de uma emoção intensa e carregada de sentido. Quis a descida de mais uma, mas a serenidade já a dominava. Sem abandonar a beleza dos olhos de Joalvo, deu a última tragada.
Nunca mais o veria. Mas prometeu-se, como fidelidade ao enlevo sublime que a elevara sem enganos à face mais calma do deleite, que a arrebatara por todos aqueles anos, tão sutil e tão definido, tão inteiro e tão gratuito, a um só tempo contido e transbordante, jamais esquecer os seus olhos.
quinta-feira, 26 de janeiro de 2012
Lubricidade
Ele não queria um espetáculo. Não lhe eram agradáveis os infames liames do incesto, ele que não tinha família, sequer vestígios, mas aquela mulher era seu sopro, seu ar, seu vento, o que restaria após uma noite rasgada na carne da ânsia, labareda de tora escassa.
Era bem de seu feitio evaporar-se abandonando cinzas, como um vitral descolorido numa janela de maçonaria. A abundância de aliciantes melodias, untadas com quimeras sorrateiras, dava-lhe a qualidade das ninfas revestidas de purpurina roxa e adesiva.
Ele, como folha de papel vermelho vivo, proporcionava à sua cola de brilhos uma superfície plana, logo porosa e sulcada por ranhuras ásperas em que suspiros sangravam.
Afinal, chegou ao intento de estourar por si mesmo aquelas bolhas de sabão que insistiam na manutenção de sua integridade iludida, antes que sua explosão espontânea configurasse uma hecatombe para sentidos semialertas.
Não lhe importavam as ruas escorregadias agora. Na companhia do nada, sentia o resiliente pulsar de seu coração, físico, material, inteiriço, composto organizado de química e eletricidade, e toda a vasta fisiologia que lhe permitia andar sob a noite que suas córneas registravam.
Subindo ladeiras, encontrava a si mesmo no espelho do asfalto molhado. Exposto ao céu nublado caindo como conta-gotas, seus cabelos se ondulando nas fissuras de seu rosto, era um prazer recriado a inalação do sereno em seus pulmões, e nada lhe faltava mais no manso cavalgar da madrugada.
Era bem de seu feitio evaporar-se abandonando cinzas, como um vitral descolorido numa janela de maçonaria. A abundância de aliciantes melodias, untadas com quimeras sorrateiras, dava-lhe a qualidade das ninfas revestidas de purpurina roxa e adesiva.
Ele, como folha de papel vermelho vivo, proporcionava à sua cola de brilhos uma superfície plana, logo porosa e sulcada por ranhuras ásperas em que suspiros sangravam.
Afinal, chegou ao intento de estourar por si mesmo aquelas bolhas de sabão que insistiam na manutenção de sua integridade iludida, antes que sua explosão espontânea configurasse uma hecatombe para sentidos semialertas.
Não lhe importavam as ruas escorregadias agora. Na companhia do nada, sentia o resiliente pulsar de seu coração, físico, material, inteiriço, composto organizado de química e eletricidade, e toda a vasta fisiologia que lhe permitia andar sob a noite que suas córneas registravam.
Subindo ladeiras, encontrava a si mesmo no espelho do asfalto molhado. Exposto ao céu nublado caindo como conta-gotas, seus cabelos se ondulando nas fissuras de seu rosto, era um prazer recriado a inalação do sereno em seus pulmões, e nada lhe faltava mais no manso cavalgar da madrugada.
quarta-feira, 4 de janeiro de 2012
A bancarrota
Ele pensava. Olhava em volta, frêmitos no peito, a janela sugestiva sob o céu desabando em fúria. A duas portas, o elevador o esperava glacial. Numa mesinha, um maço, abandonado, de cigarros finos. Há anos havia parado, temendo o coração. Apossou-se deles, afinal, agora, morrer do coração seria um bálsamo. Dirigiu-se com passos pesados à sala de café, onde apanhou uma caixinha de fósforos. A primeira tragada em tanto tempo quase o fez tossir. Sua mente esvaziou-se diante do ato de fumar, como se tudo tivesse subitamente se reduzido a uma sala pouco ventilada, em que um alquebrado debilmente retomava um vício. Um ritual esquecido. Nada como a simplicidade de inalar a fumaça, segurá-la no pulmão, e devolvê-la ao ambiente, engendrando uma sutil excitação, uma falaz liberdade, um agressivo e insensato desdém. Apagou a guimba numa xícara, atirou longe o resto do maço, e desceu. O que tinha a dizer era pouco. Precisava apenas sustentar o olhar, diante das luzes ofuscantes, dos rostos indignados e dos microfones, que regurgitariam, numa náusea pungente, toda a estupidez que ali o conduzira.
quarta-feira, 12 de janeiro de 2011
Uma noite vaga
Percebo, através do sinal vermelho, que estava prestes a entrar na contra-mão. Corrijo-me no verde, mas já não sei onde estou. O rádio toca o obscuro doom de alguma banda sueca ou francesa, cantado em inglês. O limpador de pára-brisa lentamente afasta as gotas acumuladas, o chão molhado brilha refletindo a luz dos postes. “Faltam quarteirões”, penso, e olhando as horas no painel duvido que chegarei a tempo. Sem direção, sem mapa, sem gps, sem qualquer forma de orientação no espaço, achego-me ao tempo. “Não tem importância”, avalio depois de vários minutos. “Não vai dar pra chegar”. Desobrigando-me de qualquer objetivo, de qualquer razão para estar dirigindo àquela hora, naquela noite, eu apenas sigo. Vejo setas apontando para a direita, para a esquerda. Escolho a esmo, sem saber se ando em círculos. É um instante perdido numa noite vazia. É catártico saber que, enquanto uns se preparam para a manhã de dia útil e outros se apertam em sapatos desconfortáveis, eu vagueio. “Vagueza é sinônimo de riqueza”, dizia Federico. Enxergo isso agora, entre letras e acordes funerais. “Qual é a riqueza deste momento?”, olho no retrovisor. À minha frente o sinal novamente fecha, há luzes fortes no posto de gasolina. Um desgarrado sedã se acomoda ao meu lado, com vidro fosco. É em seu reflexo espelhado que o verde se derrama, pouco antes de não restar nada. À minha frente vejo a lagoa.
segunda-feira, 27 de dezembro de 2010
Amor fati, sem subterfúgios
O cheiro de hospital o enervava. Antônio esperava no balcão a papelada a assinar. Beto, o cheio de vida, o alegre, o risonho, o otimista incurável, sedado em um dos quartos, poucas horas depois de não conseguir morrer. Antônio, o cético, o macambúzio, o pessimista convicto, impaciente, ansiava por um cigarro. O relógio indicava três da manhã e sua cabeça doía. A recepcionista, a par da situação, tentou inutilmente amenizar seu sofrimento com um tom suave. A caneta que lhe emprestou falhou, e ele mal conseguiu balbuciar. A mulher entendeu e estendeu-lhe outra, que fluiu com sua tinta azul, deslizando no papel o rabisco que usava como marca. Lembrou-se de quando assistira à performance de ioiô de um sujeito que visitara o colégio e saíra dando autógrafos aos meninos mesmerizados. Estupefato diante de linhas ininteligíveis, achou que ele era estrangeiro e escrevia com outro alfabeto, até que Beto o socorreu explicando que às vezes não dá para entender as assinaturas. Passou aquela tarde desenhando, buscando uma forma bonita com a qual mascarar o próprio nome. Saiu e percebeu que chuviscava. Acendeu o cigarro, dando passos lentos para lá e para cá. “O que vou dizer a mamãe?”, indagou-se sabendo que aquilo a mataria. O seu querido, o seu xodó estirado numa cama de hospital, inconsciente após uma lavagem estomacal. “Ela nem sabe que Fernanda o largou”. A esposa do irmão também desconhecia os eventos daquela noite. Quem fez as vezes de anjo da guarda foi uma vizinha que tinha a chave do apartamento e entrou desabalada quando ouviu os gritos. Boa maneira de tentar se matar, tomar trinta comprimidos e sair berrando a quem quiser e a quem não quiser ouvir. Antônio antecipava o dia seguinte e distraiu-se remoendo o tema da aula que daria às sete, o amor fati nietzscheano. Não era fã de ironias, apesar de sua aguçada veia mordaz. As horas passavam, a chuva suave caía, o maço em seu bolso se esvaziava. Embaralhando na mente os rostos da mãe e da cunhada, entrou e pediu um café. Dando passos lentos para lá e para cá, apanhou o celular, olhando a noite clarear, e apertando os botões chegou ao nome dela. Ele tentou se matar, esse é o fato, e não há subterfúgios. Fernanda, voz vacilante, ia já para lá.
quarta-feira, 15 de dezembro de 2010
Beethoven
segunda-feira, 7 de junho de 2010
O cenário e a eterna recordação
Não suporto mais esta enxaqueca. É tão forte que... meu Deus, será um derrame? Ou... acidente... acidente vascular alguma coisa... cerebral! É isso. Acho que é AVC o nome. Bom, mas acho que não tô tendo, porque se tivesse já teria arrebentado tudo. Ou talvez não... mas não vou levantar daqui, daqui não saio, não arredo um centímetro. Eu já vou estar morta quando eles perceberem... vão se sentir culpados... cara, puta-que-pariu, como é que me vêm com aqueles pedidos! Dois deles! Um casamento... e uma bicicleta. Mas não é qualquer bicicleta não, né, porque o Di tem catorze anos e com essa obsessão por pedalar já quer escalar o Himalaia em duas rodas. E o casamento... ah, o casamento é coisa pouca, nem eu nem ele temos ânsia de festa, champanhe e badalações... no fim, os dois pedidos têm o mesmo preço. E eu... eu só tenho grana pra um... mas e se... não, não dá pra dividir. E pra chegar no dobro vai demorar, eu não tenho tanto fundo pra aumentar reserva rápido... a enxaqueca... não é AVC não... que sono...
"Oh Iaaaa.... Ooooohhhh I'm still alive, ehehe Iaaa Ooooohhh I'm still alive, heeey..."
Não era AVC não... lá vão os dois... nunca vi tanta empolgação por causa de uma banda. Vai ser bom passar uns dias em Sampa. Só preciso aguentar essa overdose até o dia da viagem. E já decidi. Farei o saque lá mesmo.
"Oh Iaaaa.... Ooooohhhh I'm still alive, ehehe Iaaa Ooooohhh I'm still alive, heeey..."
Não era AVC não... lá vão os dois... nunca vi tanta empolgação por causa de uma banda. Vai ser bom passar uns dias em Sampa. Só preciso aguentar essa overdose até o dia da viagem. E já decidi. Farei o saque lá mesmo.
quinta-feira, 26 de março de 2009
Os óculos
Ela era inusualmente distraída. Costumava esquecer as coisas por todos os cantos. Mais especificamente, seus óculos – estava sempre perguntando repetidamente, “onde estão meus óculos? onde deixei meus óculos? onde você esqueceu meus óculos?” O resultado disso é que eu estava sempre os encontrando, aleatoriamente, andando pelo apartamento – no criado-mudo, na escrivaninha do escritório, na mesinha em frente ao sofá, na pia do banheiro. E geralmente ela estava dormindo como se o mundo nem existisse, estirada na cama, na poltrona do escritório, numa cadeira da sala, apoiada na mesinha do sofá. E então parecia que aqueles óculos eram muito mais do que uma armação sustentando lentes corretivas. Eles pareciam algo vivo, com personalidade própria, que me olhava fixamente como um catalisador de lembranças. Porque sim, aqueles óculos eram antigos, eu lembrava o dia em que ela os tinha colocado pela primeira vez, depois de uma visita contrariada ao oftalmologista. Então eu, como se fossem o que havia de mais frágil, os pegava e ia aonde quer que ela estivesse, olhos fechados, respiração surpreendentemente leve para uma adormecida, e a contemplava como se a cada momento ela fugisse de mim, como se a cada momento eu ficasse mais perto de ficar no mundo sem nada, totalmente só – restando-me somente os seus óculos.
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