N'água e na pedra amor deixa gravados
seus hieróglifos e mensagens, suas
verdades mais secretas e mais nuas.

"Entre o ser e as coisas"
Carlos Drummond

terça-feira, 13 de junho de 2017

Resenha de cinema: "Algumas Garotas" (2013)


"Some Girl(s)"
89'

Direção:
Daisy von Scherler Mayer

Roteiro:
Neil LaBute

Baseado na peça de:
Neil LaBute

Elenco:
Adam Brody, Kristen Bell, Zoe Kazan,
Jennifer Morrison, Mía Maestro, Emily Watson

SINOPSE

Um jovem escritor, prestes a se casar, procura, em diferentes cidades dos EUA, algumas de suas ex-namoradas, para passar a limpo seus relacionamentos antigos e reparar transgressões que cometeu.

RESENHA

Este filme, categorizado erroneamente como comédia em vários sites, não é um filme para diversão. É para reflexão. O que temos aqui é um drama psicológico. Um drama bastante pesado.

| Spoilers a partir deste ponto |

O filme narra, de maneira tortuosa, a história de um psicopata emocional – o protagonista.

É um filme extremamente violento.

O protagonista, viajando por várias cidades, convida cinco das mulheres com quem se envolveu no passado a encontrá-lo em hotéis, supostamente para reparar erros que cometeu quando estava com elas. Em meio a diálogos permeados por uma névoa emocional, o filme transmite, tanto pelo tom das conversas, quanto por seu conteúdo, a agressão e a dor envolvidas nas relações discutidas. O protagonista tem um modo de falar e um maneirismo que se repete, que tem pouca intensidade emocional, o que representa bem o que pode ser o caráter de uma pessoa como ele, com ausência total de sensibilidade.

O aspecto emocional aflora nas ex-namoradas, que também são, em conjunto, protagonistas do filme. É através delas – não necessariamente de suas falas, que em geral aludem aos eventos traumáticos de forma entrecortada, mas do tom, do sentimento que transmitem – que percebemos a gravidade do que foi feito com elas, da qual ele parece sequer se dar conta, como o homem totalmente sem empatia que é. Suas lembranças dos fatos são vagas, superficiais, ao contrário das lembranças delas, intensamente marcadas na psique.

O filme mostra, de maneira contundente, que o que fazemos aos outros, no interior das relações amorosas e sexuais, tem um efeito enorme sobre suas vidas. Mostra como é importante responsabilizar-se perante os outros. Ele aborda, especificamente, a questão do abandono.

Um término deve ser feito com respeito. Na maioria das vezes, é doloroso, mas a dor pode ser amenizada se houver uma conversa honesta, para dar um ponto final. O protagonista deste filme é o caso extremo de alguém que abandona o outro sem qualquer explicação e simplesmente some. Mas, mesmo em casos menos extremos, pode haver muita dor acumulada se não há cuidado da parte dos membros do casal que está se tornando ex-casal, se não há clareza, se um não ouvir o outro. É uma dor que pode acabar sendo carregada para além da separação.

Porém, o filme mostra também que, às vezes, é inútil esperar que o outro nos ajude a lidar com nossas feridas. As ex-namoradas do protagonista tiveram que procurar, sozinhas, com maior ou menor sucesso, alívio para o sofrimento que ele lhes infligiu. Seu retorno não teve nada a ver com uma tentativa de responsabilizar-se ou fazer reparação, como ele sugere - ele acaba, ao contrário, causando mais estragos, ao cutucar feridas antigas e fazer ressurgirem emoções complicadas, com as quais é difícil lidar. A princípio, parece que ele pode ter sido motivado por seu narcisismo, sua vontade de absolver a si mesmo dos abusos que cometeu, ou, o que é mais provável, medir o quanto suas ações afetaram as ex, para ter a sensação egocêntrica de ter tido e ainda ter poder e importância em suas vidas, como alimento para a própria vaidade.

Mas, no final, a verdadeira (ou principal) motivação é ainda pior: ele é movido por seu desejo de encontrar material para sua escrita. O desejo de manter sua reputação de "intrépido cartografista da alma", como se gaba de ter sido descrito. Trata-se de um escritor sem imaginação e criatividade, como fica subentendido em várias falas. Um escritor que precisa ser um parasita de histórias reais, que envolvem pessoas reais. Para ter sucesso em suas coletas, ele usa os instrumentos que sempre utilizou: o abuso, a mentira e o engano.

Em um momento, quando uma das ex o questiona sobre um texto que ele escreveu, que contava detalhes de seu relacionamento, ele diz que “se trata de ficção”. Mas não se trata de ficção. Trata-se de fatos verídicos com roupagem de ficção. Trata-se de usar um ser humano para ter glória e lucro.

Sou escritor e essa é uma questão e tanto. Os(as) escritores(as) não têm como não basear-se na realidade que e em que vivem. Mas é necessário haver uma ética, que preserve pessoas reais de terem suas histórias sendo passadas como ficção para um público amplo. É como os homens que colocam fotos das ex-namoradas nuas na internet. A diferença é que, no caso de um escritor como o protagonista, a nudez é emocional.

O propósito do filme, para mim, é o de um alerta. Vale como uma boa reflexão sobre relacionamentos amorosos, útil tanto para evitar dores futuras, quanto para compreender melhor dores passadas. Às vezes, só se pode superá-las entendendo que o outro simplesmente não se importava, não era a pessoa que achávamos que era e não merece que lhe demos importância. O que precisamos fazer é nos valorizar e nos importar com nós mesmos, independente do que foi e é feito conosco.

Não considero o filme ruim, como a maioria das pessoas cujos comentários e notas vi na internet. Considero o protagonista ruim. Ruim como ser humano. Ruim no sentido de que ele não é mais do que um psicopata narcisista, que deixa muito sofrimento em seu rastro. Creio que parte do incômodo que o filme causa é devido ao fato de que temos a tendência de nos identificar com os protagonistas das histórias, e identificarmo-nos com este não é nada legal.

- Definição do dicionário Houaiss de “psicopatia”:

“Distúrbio mental grave em que o enfermo apresenta comportamentos antissociais e amorais sem demonstração de arrependimento ou remorso, incapacidade para amar e se relacionar com outras pessoas com laços afetivos profundos, egocentrismo extremo e incapacidade de aprender com a experiência.”

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