N'água e na pedra amor deixa gravados
seus hieróglifos e mensagens, suas
verdades mais secretas e mais nuas.

"Entre o ser e as coisas"
Carlos Drummond

sexta-feira, 15 de maio de 2009

Música no asfalto

Meia hora depois de deixar meu irmão para almoçar e passar a tarde com amigos na casa da colega, recebi um recado seu, no celular:

"Genalva, vem me buscar que eu estou odiando".

Eu não podia atendê-lo de imediato, fazia compras no supermercado.

Finalmente saí, e quando estava a alguns quarteirões do local, encontrei uma fila estática de carros aborrecidos. O sinal estava verde. Amarelou-se, e passou ao vermelho. Voltou ao verde. Os automóveis, indóceis, buzinavam em coro, resmungando, parados. De novo o fugaz amarelo, de novo o demorado vermelho. E a cena foi se repetindo, num ciclo infernal.

O celular tocou na minha bolsa, exasperando-me com uma melodia chata. "Tenho que trocar este ringtone", resolvi. Aquilo me irritava. Atendi, já prevendo a insistência surda de Gumercindo.

– Cadê você, Genalva? Não vem, não?

– Gu, eu tô presa no sinal, ninguém aqui sai do lugar.

– Mas que saco, Genalva, vem logo!

Como se eu pudesse levantar voo, num carro de filme americano. A impaciência de Gumercindo somava-se à dos carros, e a balbúrdia começava a doer na minha cabeça. Dispensei-o, gritando que eu não era um deus para me teletransportar para onde bem quisesse, com onipresença em potencial.

A essa altura, motoristas saíam de seus veículos e soltavam impropérios para os supostos molengas à sua frente. Começavam discussões. Alguns acendiam cigarros e compartilhavam a curiosidade enfastiada, querendo desvendar o motivo de tanta demora. Os mais ousados resolviam caminhar para frente, procurando a solução do enigma, como sherloques do meio-dia. Outros, mais tímidos, nem baixavam os vidros, com medo dos trombadinhas.

Após algum tempo, veio a explicação: um pedreiro, que trabalhava na construção de um prédio, despencara do décimo andar, no meio da rua. Em seu desequilíbrio, agarrou-se a outro, tentando evitar a queda, mas não conseguiu mais do que levá-lo consigo. O resultado foi que caíram, um em cada pista, vermelhos, e ninguém tinha nervos para pegá-los e colocá-los no passeio.

Ao ouvir a inusitada história, só consegui pensar, "meu Deus, estou numa música do Chico!" Foi então que me invadiu uma ambiguidade inquieta. Por um lado, compaixão pelos desafortunados operários. Por outro – e eu não sabia qual sentimento predominava – um certo orgulho de me ver assim conectada à magnífica arte de meu endeusado compositor.

O celular tocou de novo. Rejeitei a ligação e pensei, "já sei que ringtone vou escolher".