N'água e na pedra amor deixa gravados
seus hieróglifos e mensagens, suas
verdades mais secretas e mais nuas.

"Entre o ser e as coisas"
Carlos Drummond

quarta-feira, 27 de fevereiro de 2013

No fundo dos meus olhos um despenhadeiro...

Você foi o melhor entre os piores dançarinos,
me conduzindo sem saber o que movia,
sonegando o inteirar-me
do seu desvelo de todos os espinhos
atravessados nas partes mais enrugadas
da minha pele adormecida.

Você me leu nas entrelinhas,
encontrando no espaço das palavras
um reflexo a focar suas feridas mesmas,
inequívocas e indiferentes às tentativas
de remendar, com cacos viscosos e vermelhos,
botelhas e taças em cristal quilatado,
toques transparentes em muros arrasados
e inchados da carga aterradora
de uma hipermetropia abominada,
sorrateiramente vulnerável
ao perfume dos macios roçares,
agonizando a cada passo
a atração pelo vinco das águas,
alvejadas de luar,
seguindo a velha embarcação.

Você não pôde ouvir o que eu te olhei,
alheio aos gritos que lancei ao seu vazio,
na imobilidade de uma canção ferida
e indolentemente abandonada.

Vou correr,
jogar-me do penhasco revolto
nas águas de um lago sem vento,
serei um sopro sem vela,
nadarei das águas escuras
ao infinito dos meus pulmões,
temerária confiarei em minhas pernas
e em meus braços desfolegados.

* Fotograma de Silver Linings Playbook, de David O. Russell (2012)

sexta-feira, 22 de fevereiro de 2013

O acorde das nuanças imortais

O Branco, envolvendo lentamente o rio negro do tempo com todas as cores, incorporando e fluindo numa união-encanto que nutre o âmago insondável das pulsações, toando em onda-melodia a luminância exatamente discreta ou sublinhada, carregando música entre curvas e pontos religados, oferendando em ritmo alternante o escorrer das horas em perene dissolver e reintegrar, assovios-marulho sutilmente esvoaçando o útero de todas as criações,

explode escorchante encadeando uma lira sem origem nem parada, solfejo, murmúrio e grito num composto em que centro e fronteira inexistem, luz no obscuro, raio raro e peregrino.

domingo, 17 de fevereiro de 2013

Uma noite em brisa

Ele e ela
colidiram numa noite sem lua.
O índigo arqueado da abóboda
modulava as falas como veludo
num pescoço de inverno.
Cadências em lilás fluindo nos ouvidos
como novelos na escuridão.
Uma carícia ondulada respingando nos olhos
ao alcance do mais leve formigamento
de toques macios como pétalas.
Cantavam folhas voando em uníssono interior,
não se sabiam certos,
saltavam felizes de areia em areia.

segunda-feira, 11 de fevereiro de 2013

Golpe premente, espessura qualquer

Márcia acordou faminta. Nada na despensa. No supermercado, um infante de dois ou três anos a mirava pensativo. Ela lhe sorriu. No trabalho, discutiu com um colega sobre um traço. Sua amiga lamuriava agruras sentimentais, ao tomarem limonada. O telejornal alvejava acidentes e assassinatos. Adormeceu no meio de uma sitcom e sonhou com uma parede.

Márcia acordou faminta. Foi à loja de ferragens e pagou por um martelo. O maior que pôde encontrar.

quarta-feira, 6 de fevereiro de 2013

Neste pequeno espaço entre nós

“Acho que, se existe algum tipo de Deus, ele não está em nenhuma pessoa. Nem em você, nem em mim, mas neste pequeno espaço entre nós . Se há algum tipo de mágica neste mundo, ela deve estar em buscar entender alguém e compartilhar alguma coisa. Eu sei, é quase impossível conseguir, mas quem se importa? A resposta deve estar na tentativa.”

- Antes do Amanhecer, Richard Linklater (1995)

Você conseguiria
me olhar por uma hora
sem qualquer pensamento
enquanto te olho
num rebento contemplar

O que você veria
desnortear, cansar, repelir
claustro de excessiva gravidade

ou peregrinar em luz
perdendo-se para encontrar em cores
uma quebradiça existência a girar

Os meus olhos você tocaria
sorrindo no tremular de um tempo
que sem se mover se passa

vibrando abertos indagares
palavras fugindo em pálpebra
cílios tateando no vento
as invisíveis pulsações

apalpando a plenitude
de mergulhar no vazio entre nós
como anfíbios amantes
pegando ondas com as pupilas

sábado, 2 de fevereiro de 2013

Os sentidos do vento palpável



“É ótimo ser espírito e testemunhar por toda a eternidade apenas o lado espiritual das pessoas. Mas, às vezes, me canso dessa existência etérea. Não quero pairar para sempre. Quero sentir um certo peso, que ponha fim à falta de limite e me prenda ao chão. Eu gostaria de poder dizer ‘agora’ a cada passo, a cada rajada de vento. ‘Agora’ e não mais ‘para sempre’ e ‘eternamente’.”

- Asas do Desejo, Wim Wenders (1987)

Um mergulho no chão que elástico encrosta,
sangrando penas esgotadas,
numa consequência inversa emendando as pernas,
criando tendões e solas com detritos de asas
em cadência pulverizando farelos de cascas
como areia aderente fixando ideias no solo.

Esquecendo o inexorável movimento
de ventos alheios a qualquer controle
para carregar a densidade vácua das escolhas,
esquivando sem sucesso a incerteza
no escondido encanto da pretérita indiferença.

Encarno o não-saber saudando os limites do horizonte,
no momento as direções se abrem, imediatas
e presas a passos e saltos sem voo –
não enxergo no escuro e sinto sono,
ouço as cordas alvejadas do piano
que pesa e responde a meus dedos com acordes,
tudo me exige estudo,
dobro os joelhos e perco fôlego em escadas.

Não tenho nada além do agora
que foge e retorna a cada instante.

As brisas são carícias,
azul e amarelo se casam na aurora,
frutos exalam gostos,
nenhum silêncio abafa o respiro
da beleza que sem remorsos findará –
não pairo, piso gravidade
furando a terra e vertendo a vida mortal.