N'água e na pedra amor deixa gravados
seus hieróglifos e mensagens, suas
verdades mais secretas e mais nuas.

"Entre o ser e as coisas"
Carlos Drummond

quinta-feira, 31 de dezembro de 2015

Planto ao redor estas sementes

Eu vejo acolhimento e hospitalidade.
Eu vejo compartilhamento e distribuição.
Eu vejo cordialidade genuína.
Eu vejo o estabelecimento da paz.
Eu vejo justiça e restituição.
Eu vejo o bem na liderança.

Eu vejo a fraternidade universal.

Eu alcanço,
dentre a miríade dos fatos,
a luz que teimosamente
se intromete no breu.

Não fujo da floresta incendiada;
tento ser como o beija-flor
de Wangari Maathai,
vivendo a esperança como quem,
num vai e vem, busca as gotas no rio
e as deixa pingar nas folhas crestadas.

sexta-feira, 25 de dezembro de 2015

Citação: Divaldo Franco / Manoel Philomeno de Miranda

"Quando a verdadeira solidariedade viger entre as criaturas humanas e todas se recordarem de que o bem-estar de um membro redunda na alegria de todos, mudar-se-ão os quadros do sofrimento, em razão do auxílio recíproco que predominará, vencendo o egoísmo e as paixões primárias responsáveis pelos desastres morais e espirituais que assolam a terra."

Amanhecer de uma nova era

Divaldo Franco / Manoel Philomeno de Miranda

(Capítulo 12, páginas 152-153)

quarta-feira, 9 de dezembro de 2015

Tradução

A verdade é um diamante impolido
de infinitas faces espelhadas.

Há que dar-lhe a volta
para traduzir sua totalidade evasiva
e seus reflexos glamorosos.

(cada giro, novas imagens)

Tradutores se diferenciam;
algo se perde.

Não há como penetrar o diamante
sem o quebrar

ou abarcar a simultaneidade
de seu volátil deslumbramento.


. Tributo ao depoimento de José Saramago no filme Janela da Alma.

terça-feira, 1 de setembro de 2015

O leme roto dos meus passos

O amor é como andar num lago congelado, cuja superfície nunca se sabe se vai se estilhaçar sob os seus pés. A sua entrega é como um sol que se aproxima e te arde, te enche de vida e de espasmos, sobressaltos no chão que se grudava aos seus pés e começa a escorregar, a transpirar, fica mais fino, refletindo como o gume afiado de um punhal essa luz que cega e desnorteia. Eu dou um passo, qualquer passo, mas não alcanço as margens, sequer as vejo, é tudo clarão e sol e gelo derretendo.

Mas nada disso parece importar ao meu amor. É como se suas solas fossem mais frias do que o cume das montanhas, regelando sem medo o que pisa, tudo abaixo de suas pernas solidez e espessura. É como se o que me separasse do fundo daquelas águas fossem somente suas mãos ásperas que me seguram como garras a uma presa. Eu não quero mais deslizar nesse arremedo de solo, girando desgovernada a confiar em braços que podem não ter tanta força assim, tanto fôlego assim. Nunca reparei se eles são torneados. Os seus dedos são leves e obstruem a percepção de qualquer traço de intumescimento, ainda que poderosamente comandem os meus poros rendidos. É desse poder que preciso fugir, é dessa mescla de gelo e sol que subtrai todas as certezas, é desse ardil de um deslumbramento  que me deixa a todo o tempo suspensa e sem aprumo.

É se afastando do abismo que irá atravessá-lo? Não confia na confecção de suas próprias redes? Esse chão não precisa ser gelo e esse sol não precisa incinerar o coração dos seus alicerces. Você é o seu próprio solo, e o seu material pode ser temperado como o aço da siderurgia mais pura.

Eu não possuo o segredo dos metais, nem o sangue dos viadutos. O sol sobre o meu corpo é o mesmo que queima o rosto dos vampiros, meu gelo é o da temperatura que pulsa no limite da fusão. Suas palavras se chocam com o meu entendimento, seu tom sincero não penetra as veias do meu otimismo moribundo. Dele só restam artérias que se rasgam em fendas, tingindo a pele de um vermelho que se desbota como a palidez crescente do meu peito em seu compasso lento.

Eu vejo cor e movimento em seus condutos expostos, névoa imprópria entre suas pálpebras e um colar de espinhos que se descola de sua garganta a cada grito baixo com que destila a sua angústia. Se mirasse num espelho limpo suas feições no fluir dos desabafos, observaria a tez corando e olheiras se desvanecendo, ainda que a sutileza das alterações não registrassem na vista qualquer diferença. O meu olhar e a minha escuta são esse espelho, sua presença e fala vigorosa a sua mirada. Não fujamos desse lago e do desafio de suas águas. Sejamos nautas de nossos próprios barcos, construídos com paciência e esmero na companhia do tempo elaborado, feito amigo na intimidade da confidência.

Os remos se esquivam do aperto de minhas mãos, que clamam bandagens para as linhas retorcidas de suas palmas. Os ventos se alternam entre tornados e calmarias totais, numa instabilidade misteriosa que ultrapassa qualquer meteorologia. Não sei se esta jangada sustentará a carga das minhas obscuridades, mas ofereço, no limite das minhas forças, o leme roto dos meus passos à travessia de linguagem a que nos lançamos.

sexta-feira, 28 de agosto de 2015

O cálculo do fim

Há algum tempo
que, vendo números,
vejo pessoas.

Não são os números
enumerando as pessoas,
são as pessoas
humanizando os números.

Alguns números
procuro em toda parte,
por serem os seus números.

Mas fatigado
por ver apenas os números,
e não você,
quero retirar deles a humanidade
que lhes conferi,
quero renumerificá-los.

Ao ver um seis,
um onze, um quinze,
um dezessete ou um vinte e seis,

quero ver um seis,
um onze, um quinze,
um dezessete e um vinte seis,

ao invés de ver você,
como vejo agora.

Não quero te ver
quando olho as horas,
quando mudo de canal,
quando aumento o volume
do aparelho de som,
quando mudo de faixa
ao ouvir um álbum,

ainda que na música
eu te ouça cantarolar,
que seja um filme impregnado
de nossos risos e lágrimas,
ou que eu vá pra casa
sempre naquele mesmo horário.

Quero chegar logo
ao dia em que um número
será somente um número,
e para isso, já que humanos
se tornaram, preciso,
como se assassino fosse,
desumanamente matá-los.

Os números, para mim,
serão cadáveres,
transformados em cinza,
jarros frios
carregando apenas
um rastro irreconhecível
de uma humanidade
que, fora de mim,
nunca lhes pertenceu.

Talvez o seu rosto,
descolado dos números,
possa ser, ao contrário,
numerificado,
neutralizado, esfriado
como uma série de cálculos,
de subtrações e divisões
que reduzam ao nada
o infinito que você
me parecia.

Esse é um peso
que está além do poder
dos números,
mesmo os genuínos,
desumanizados,
números, mesmo.

Esse é um peso
que pertence a quem,
num enlevo inadvertido,
os humanizou.

Não te verei
ao olhar as horas,
ao mudar de canal,
ao aumentar o volume
do aparelho de som
ou ao mudar a faixa do álbum,

e, à medida que os números
das horas e dos dias
se sucederem, se repetirem
no compasso que segue indiferente
à humanidade que lhes atribuí,

o seu rosto se desvanecerá,
como a tinta perecível e falha
com que agora,
num arremedo de matemática,
calculo este fim.

sexta-feira, 21 de agosto de 2015

A dor de uma pedra

Um diamante não polido
é uma pedra.

Mas, acima de tudo,
um diamante não polido
é um diamante não polido.

Chamar de pedra
um diamante não polido
é perder a riqueza
de um diamante não polido.

Assim é com o calcário,
o quartzo e a esmeralda,
e qualquer substância
que se chama de pedra,

pois um calcário é mais que uma pedra,
um quartzo é mais que uma pedra,
uma esmeralda é mais que uma pedra,

e é também mais do que
calcário, quartzo e esmeralda.

Que dor é para uma pedra,
qualquer pedra,
ser chamada de pedra.

O que uma pedra é
não cabe no que é ser pedra.

O que uma pedra é
é o que uma pedra é.

sexta-feira, 31 de julho de 2015

Citação: Paulo de Tarso (c. 2 AC - 62/64 DC)

"O amor é paciente, o amor é generoso; não é invejoso, não se ostenta, não se incha de orgulho. Nada faz de inconveniente, não procura seu próprio interesse, não se irrita, não guarda rancor. Não se alegra com a injustiça, mas se regozija com a verdade. Tudo perdoa, tudo crê, tudo espera, tudo suporta."

1ª Carta de São Paulo aos Coríntios

(13, 4-7)

Algumas dessas definições podem parecer utópicas para o ser humano. Porém, a natureza de qualquer utopia é ser uma espécie de estrela guia, onde nunca se chegará, mas que orienta numa determinada direção.

Ter fé nas pessoas, às vezes, é o mais difícil. Principalmente quando elas nos decepcionam, ou estão muito distantes do que acreditamos ser o comportamento ético, honesto, fraterno. Porém, para ter fé na Humanidade, é preciso ter fé nas pessoas, na possibilidade de sua regeneração. E é tendo fé na Humanidade que temos a maior chance de evoluir.

Perdoar não é o mesmo que fingir que nada aconteceu, deixar de reconhecer que houve um erro, que há consequências para esse erro e que elas devem ser implementadas. Mas a energia do perdão é como uma limpeza, que possibilita um recomeço em um nível superior. Os erros são excelentes professores. E o aprendizado é sempre facilitado quando se tem fé nos alunos.

Perseverar no desejo de uma Humanidade melhor, na crença na possibilidade de sentir, praticar e difundir, cada vez mais, um amor como o que Paulo sugere, com determinação e engajamento, é essencial na busca de uma vida pessoal e coletiva mais justa, solidária e feliz.

Por maior que seja o desafio.

terça-feira, 28 de julho de 2015

Citação: Rainer Maria Rilke (1875-1926)

"Deixe a seus julgamentos sua própria e silenciosa evolução, sem a perturbar; como qualquer progresso, ela deve vir do âmago do seu ser, e não pode ser reprimida ou acelerada por coisa alguma. Tudo está em levar a termo e, depois, dar à luz. Deixar amadurecer inteiramente, no âmago de si, nas trevas do indizível e do inconsciente, do inacessível a seu próprio intelecto, cada impressão e cada germe de sentimento, e aguardar com profunda humildade e paciência a hora do parto de uma nova claridade: só isso é viver artisticamente na compreensão e na criação.

Aí o tempo não serve de medida: um ano nada vale, dez anos não são nada. Ser artista não significa calcular e contar, mas sim amadurecer como a árvore que não apressa a sua seiva e enfrenta tranquila as tempestades da primavera, sem medo de que depois dela não venha nenhum verão. O verão há de vir. Mas virá só para os pacientes, que aguardam num grande silêncio intrépido, como se diante deles estivesse a eternidade. Aprendo-o diariamente, no meio de dores a que sou agradecido: a paciência é tudo."

Cartas a um jovem poeta
(1903)

Rainer Maria Rilke
(1875-1926)

- Tradução de Paulo Rónai

quarta-feira, 10 de junho de 2015

Resenha de Graphic Novel: "Criminal: Covarde" (2006-2007), de Ed Brubaker e Sean Phillips



Nesta graphic novel de “hard-boiled” crime fiction, primeiro volume da série Criminal, Ed Brubaker e Sean Phillips exploram com maestria os meandros da psique de Leo, um criminoso emocionalmente atormentado.

Ele tem como principal objetivo de vida nunca ser capturado, e elabora uma série de regras para seus “trabalhos”. Seguidas à risca, elas o protegem do destino que, no fundo, sabe que merece: a prisão ou a morte.

Chantageado emocionalmente por outra criminosa, que lhe traz à memória fantasmas do passado, acaba se dispondo a quebrar essas regras, aceitando a participação em um roubo de carga, proposto por policiais corruptos. Leo é um planejador inteligente, com muita experiência, e por isso é procurado. Dentro do submundo do crime, porém, sempre há que se manter a guarda, pois qualquer regra quebrada pode ser fatal.

O casamento entre o texto de Brubaker e a arte de Phillips compõe uma atmosfera noir pulsante e cativante, traduzindo a complexidade psicológica que pode revelar, em um criminoso, um ser humano, e não um mero psicopata. Nesse cenário, o anti-herói se confunde com o herói, levando à identificação perturbadora e inquietante do leitor com o protagonista.

Excelente experiência de leitura para amantes do gênero e leitores de mente aberta, dispostos, através de um texto fluente e uma arte insinuante, a mergulhar na análise de uma psique ambígua e angustiada.

sábado, 6 de junho de 2015

Resenha de Livro: "O verso do cartão de embarque" (2011), de Felipe Pena


Dividido em capítulos que, em fragmentos, a cada vez se focam em personagens que compõem, sob diversos ângulos, uma mesma história, a narrativa do romance "O verso do cartão de embarque" desafia o leitor a construir o sentido, a partir de cenas breves, memórias soltas e reflexões instigantes.

O estilo varia de capítulo para capítulo, e, em uma leitura mais lenta e paciente, pode ser apreciado em seus detalhes, estimulando uma contemplação que vai além do enredo misterioso.

É um tipo de livro que dá vontade de ler uma segunda vez, logo após terminá-lo, caso se tenha gostado. Como diz uma citação, atribuída a Clarice Lispector, nas páginas finais do livro: "O texto ganha sua secreta redondez, antes invisível, quando é visto de um avião em alto voo. Então, adivinha-se o jogo das ilhas e veem-se canais e mares."

É como se os capítulos fossem as ilhas, cujos canais, as ligações entre eles, e os mares, os temas subjacentes, só pudessem ser delineados após a última frase do livro, cuja totalidade é, então, vista do alto pelo avião, a leitura inteira.

Recomendado para quem gosta de narrativas intrigantes e fragmentadas, que desafiam o leitor a construir o sentido, e para quem gosta de uma linguagem eclética, alternadamente subjetiva, sensível, objetiva, reflexiva e irônica.

domingo, 31 de maio de 2015

terça-feira, 5 de maio de 2015

O sopro úmido de um bálsamo

Soprarei as crateras da sua pele,
como uma brisa tão úmida e afável,
que a quentura do ardor excessivo
arrefecerá, como efusão de gotas
a dissolver, curando a sede ingrata
de olhos há muito tempo enrugados.

Um alívio brando emanará dos poros
das mais mínimas dores, costurando,
como pontos, o coração dos anseios,
tecendo, com linhas vivas e frescas,
sob o comando das mãos renovadas,
a pavimentação, em amena temperatura,
das mais agrestes veias e afeições.

domingo, 26 de abril de 2015

O balanço das águas

Você pode,
com a potência da sua fala,
quebrar as águas
da mais sólida confiança.

Somente pulsando
com a sabedoria colhida
no resgate de sua essência,
regada por gratuita afeição,
num parto feliz emergindo
de fecundas profundezas,

o risco da força demandando
a disciplina da ponderação
a submeter todos os anseios,

será fiel à qualidade
de guardiã da inteireza dos seres,
vibrando no âmago das aspirações,
a estabelecer e preservar
o exigente e delicado balanço
de intensidade e comedimento.

quinta-feira, 16 de abril de 2015

As asas da pétala

Como uma pétala que só se deve olhar,
você emana a beleza inviolável
que se deixa colher, somente,
pelo jardineiro mais leve e sem apego.

A pétala só à flor pertence;
ainda que colhida numa permissão
generosa, o pólen, com suas asas,
foge sempre, em enlace com o vento.

Seu destino é fecundar,
nas mais longas distâncias,
gerando plenitude de harmonias
e de cores, riqueza gratuita
espargindo, em todos os cantos,
sua alma suave, perfumada,
de força gentil e majestosa.

segunda-feira, 13 de abril de 2015

Um lençol de seda

I

A um palmo de distância
seus olhos quase se encontram.

Os movimentos tolhidos
por suas próprias correntes,
contemplam imagens guardadas
nas cavidades mais íntimas.

II

A areia escorre na ampulheta.

O ensaio se findando,
o palco de luzes espera
a presença do ser;
ao primeiro ruído da tábua
o pano se desata.

terça-feira, 31 de março de 2015

A depuração da brisa

Ela sopra, oculta e nua,
ideias sábias e gentis,
a revolverem-se no concerto
dos sons, em estado bruto,
entornando-se em ouvidos
alertas a qualquer distorção.

Eles acolhem suas asas,
maviosa, submetendo-a
ao engenho da compreensão,
tomando conta do corpo
a absorver a voz sussurrada,
tão forte por ser tão sutil.

domingo, 22 de março de 2015

A tocha

Percebo, observando os meandros
do meu discurso, as lacunas
de sentido em que a ofensa,
involuntária e ardilosa, se infiltra.

Empenho-me na busca das palavras
que melhor representem as considerações
que cultivo, imergindo-as no tato
que se desloca de qualquer ferida.

Falar é um salto no abismo
dos entendimentos; quero ser
uma tocha que ilumina a interpretação
e queima a farpa mais escondida.

quarta-feira, 18 de março de 2015

Absorção

Mergulho na essência dos ideais,
observando, com olhos de aprendiz,
sua fauna desconhecida e poderosa.

O fôlego, nesta água, é escasso;
anoto, mentalmente, a figura nobre
das cores em nitidez ancestral.

Voltando à superfície pela areia,
recebo nos poros o sol gerador,
maturando o broto das ações futuras.

sexta-feira, 13 de março de 2015

A saúde e a solidariedade

A coletividade,
caminhando
como uma criança,
de mãos dadas
com cada uma de suas células,
carrega em sua marcha
a síntese dos sentimentos,
propósitos e realizações
dos seres que a compõem.

A saúde
é a harmonia do corpo,
cada órgão pulsando
em consonância,
instaurando
um organismo genuíno,
beleza que brota
da feliz união
de todos os raios
da fonte luminosa.

O pulso de saúde,
do indivíduo e do coletivo,
é a solidariedade,
paz de sabedoria
atuando sem ódio,
o mais letal
de todos os venenos –
cada gentileza um antídoto,
cada emanação de amor
uma prevenção.

domingo, 8 de março de 2015

O sustento do olhar

Ela aprendeu,
cultivando a confiança
no potencial
de inteireza da sua alma,
a sustentar o olhar,
dentro dos tornados
de insensatas emoções,
descobrindo o segredo
de preservar-se da derrubada.

Seus olhos abertos
e erguidos,
francos e macios,
emanando força de paz
e virtude de comunhão,
são o seu eixo,
sólido no cerne
e flexível nas extremidades,
aprofundando a alma
em alicerce convicto.

quinta-feira, 26 de fevereiro de 2015

Um solo fértil

Aliando-me ao tempo,
fluo ao ritmo do meu ser.

Os instantes se sucedem como um fio que se estende,
imagens se desmanchando suaves
no movimento sem início e sem fim.

Oferecendo-me ao vento e suas carícias,
embebido em flamas contidas,
na terra derramo respingos de alvorecer.

sexta-feira, 6 de fevereiro de 2015

O "palanque whatsapp" e o "pensamento fast-food"

Tornou-se comum, no whatsapp, o compartilhamento de textos, que são repassados de grupo em grupo – como é o caso deste aqui.

Muitos deles versam sobre política.

Esse é um assunto que interessa a todos, já que a política diz respeito ao que é de interesse público. Assim, é da maior importância que haja compreensão plena dos textos que cada um compartilha com seus grupos.

Muitas vezes me pergunto se essa compreensão é sempre clara para todos os que repassam tais textos. Em geral, são textos críticos, de tom exaltado – e é fácil entender por quê.

Os governos, em todas as suas esferas, executiva, legislativa e judiciária, estão, de fato, em um nível muito baixo de qualidade, de justiça e de honestidade, e, portanto, merecem muitas críticas.

(Para dizer o mínimo.)

Além disso, sempre há opiniões diferentes sobre que programas devem ser executados, e é saudável estabelecer um diálogo sobre que direção os governos devem tomar.

Mas me parece que, em muitos desses textos, o que provoca a simpatia dos leitores, e seu repasse a outros grupos, é um “tom” geral que os permeia. Um “tom” que dá a impressão de ser “contra” este ou aquele partido, este ou aquele programa de governo.

E, assim, tomando-se o “tom” como oposição ao que se considera equivocado ou injusto, todas as minúcias, todos os detalhes do texto, acabam passando como verdades, que “consumimos” e adotamos sem muita reflexão.

A própria natureza do whatsapp (e também do e-mail, onde textos do tipo também circulam) é a da velocidade. Instantes depois de recebermos cada mensagem, novas mensagens aparecem, e passamos rapidamente de uma a outra. Além disso, recebemos as mensagens no meio dos nossos afazeres cotidianos, então é difícil se demorar em cada uma delas.

Mas essa velocidade pode impedir que haja uma compreensão mais exata de cada uma das afirmações dos textos, sendo absorvido apenas o “tom” deles. A compreensão demanda um certo tempo, pois é necessário refletir sobre o que é lido.

Muitas vezes as afirmações presentes nos textos possuem implicações que não são claramente percebidas. E, desta forma, vai se formando uma opinião pública, que é baseada na repetição de pensamentos, e não na reflexão autônoma sobre eles.

É como se estivéssemos sendo consumidores de pensamentos “fast-food”.

E esse é um tipo de pensamento que não nutre a nossa mente. Um tipo de pensamento que não a fortalece. Um tipo de pensamento que não contribui para nossa evolução como sociedade.

Pois é um tipo de pensamento em que, ao invés de pensar, nós “somos pensados”.

E os autores dos textos acabam arregimentando simpatizantes, aproveitando um sentimento de indignação legítimo para, subliminarmente, disseminar opiniões que lhes interessam. Opiniões, muitas vezes, enganadoras, falaciosas, com implicações imprevistas, baseadas em supostos “fatos” que, se fossem checados, se revelariam falsos.

Tomando este próprio texto como exemplo, consideremos:

Há, em algum momento, uma crítica direcionada a este ou aquele partido, a este ou aquele programa de governo? Ou é somente o “tom” do texto que dá essa impressão?

Pois o que tento dizer não é que este ou aquele partido está certo, este ou aquele programa é desejável ou não, esta ou aquela opinião é correta ou errada.

A questão, aqui, é entender com profundidade o que estamos lendo. E, assim, ter mais poder sobre nosso próprio pensamento. Poder para formar opiniões mais claras. Mais consistentes. Mais embasadas. Mais refletidas. E, no fim das contas, mais fiéis à nossa própria maneira de ver o mundo.

E, assim, poder estabelecer diálogos mais produtivos, que transcendam o nível das ofensas e atinjam o nível da busca clara, e ao mesmo tempo firme, daquilo que deve nortear a política do nosso país, do nosso estado, da nossa cidade.

Lembrando sempre que o respeito à opinião do outro é indispensável para a democracia e para o avanço de nossa sociedade. Não é desqualificando o outro que se evolui, mas através da participação consciente e do diálogo produtivo.

E diálogo é diferente de dois monólogos se enfrentando.

Ouvir, abrindo-se para entender e refletir sobre o que se ouve, é tão importante quanto falar.

Protestar é fundamental para a melhora da nossa sociedade, mas é o protesto com pleno conhecimento de causa que pode garantir uma melhora verdadeira.

sábado, 31 de janeiro de 2015

Evolução

Ouvimos, com certa frequência, a frase “não sou perfeito”. Poucos de nós ousariam afirmar o contrário.

Muitos talvez o pensem, possivelmente sem ter consciência disso. E, então, agem de forma arrogante e desdenhosa com os outros. Mas, para a maioria de nós, a consciência das próprias limitações é bastante clara - mesmo que possa ser perdida neste ou naquele momento de distração, em que nos consideramos infalíveis, donos da verdade, irrepreensíveis. 

Meu pai costuma dizer que o ser humano não é perfeito, mas é perfectível. Eu interpreto essa frase como uma indicação de que, apesar de nunca podermos chegar a ser perfeitos, podemos sempre evoluir. Sempre nos tornarmos pessoas melhores.

Uma de nossas tendências mais comuns, que tem a ver com a sensação de sermos perfeitos, é a de condenar os outros. 

(Não se trata, aqui, das condenações de cunho judicial, que devem, evidentemente, resultar em punições e - o que ainda precisa ser mais desenvolvido - processos de ressocialização)

Essa tendência também provém do nosso desejo de evolução, pois parte de uma percepção de algo que não está bom. Porém, ela não costuma ser produtiva. A condenação, neste sentido específico, é diferente da crítica, pois se dirige à pessoa, e não ao comportamento ou à ideia. 

Quando condenamos alguém, é como se colássemos o comportamento condenável, ou a ideia que consideramos falsa ou absurda, à sua personalidade. Como se não houvesse espaço para a evolução, para a melhora, para o diálogo. A crítica, ao contrário, ou pelo menos a crítica verdadeiramente construtiva, mira o comportamento ou a ideia, e não a pessoa.

É impossível sermos humanos e vivermos sem crítica. Se não fosse assim, não evoluiríamos, já que consideraríamos tudo perfeito como está. E nosso impulso de melhorar não combina com tal crença. Só temos que saber usar a dose certa, nos momentos certos, pois a crítica, em excesso e mal colocada, pode ser opressiva, e terminar não contribuindo para evolução alguma.

Faríamos bem em praticá-la apenas quando fosse de fato contribuir positivamente, sempre com respeito, serenidade e espírito amistoso, além de nunca esquecer de reconhecer, valorizar e elogiar as atitudes louváveis - assim elas serão estimuladas.

Quando usamos a faculdade crítica direcionando-a somente ao outro, e nunca a nós mesmos, estamos nos impedindo de evoluir, tanto como indivíduos quanto como sociedade. E, para direcionar nossa faculdade crítica a nós mesmos, precisamos ter humildade. Precisamos ter a percepção de que não somos perfeitos, mas que somos perfectíveis. O meu comportamento de hoje pode ser condenável, ou pelo menos, de algum modo, imperfeito, e meu pensamento pode ser inconsistente e equivocado. Mas, como membro da humanidade, eu tenho um valor essencial, que me permite superar esse comportamento ou modo de pensar, e me tornar uma pessoa melhor e mais ponderada.

E isso vale para todos nós.

A evolução coletiva sempre passa pela evolução pessoal. Se queremos uma sociedade mais amorosa, ou pelo menos mais solidária, mais justa, mais honesta, mais responsável, é preciso que cada um de nós se torne mais amoroso, mais solidário, mais justo, mais honesto, mais responsável.

Geralmente, tendemos a achar que já somos tudo isso. E que o problema é que os outros não são. E, como não temos poder sobre o outro, não temos como contribuir para melhorar nossa sociedade. Eu tendo a pensar que, mesmo se quisermos considerar que temos um caráter superior ao da maioria, sempre podemos melhorar-nos ainda mais.

E é como se, cada um evoluindo, levasse os outros consigo, juntos, como cada gota acompanha outras em uma onda do oceano.

Pois somos seres relacionais.

Independente da qualidade de nosso caráter de hoje, se o melhorarmos ainda mais, inevitavelmente influenciaremos de forma ainda mais positiva os que estão à nossa volta. E estes, por sua vez, influenciarão mais positivamente os que estão à volta deles. E toda essa positividade se difundirá pela sociedade e nos tocará novamente, numa nova onda.

Para fazer parte deste oceano de evolução, não precisamos esperar que os outros mudem. Que os outros se tornem melhores. 

Sejam esses outros os políticos corruptos, os empresários gananciosos, os chefes tiranos, os familiares e colegas de convivência difícil, os profissionais desonestos, os estranhos mal-educados, ou quem quer que seja.

Para fazer parte deste oceano de evolução, só precisamos nos tornar uma de suas gotas. Melhorando a nós mesmos, melhoraremos o mundo.

A cada dia um pouco mais.

domingo, 25 de janeiro de 2015

Fortaleza

Eu construo minha fortaleza com tijolos de força e cimento de amor, executando o projeto traçado na folha do mundo com o lápis da minha alma. Coloco-me a serviço da engenheira sabedoria, que, generosa, orienta os que a buscam no alegre labor. Meu corpo trabalha no ritmo da harmonia, minhas mãos abrindo as janelas da paz. Da torre, derramo o canto da beleza, e, no solo, abro as portas pisando a terra da comunhão.