N'água e na pedra amor deixa gravados
seus hieróglifos e mensagens, suas
verdades mais secretas e mais nuas.

"Entre o ser e as coisas"
Carlos Drummond

terça-feira, 29 de maio de 2012

O demiurgo

Garimpando palavras dentro de mim,
não encontro mais que sílabas esparsas,
letras aleatórias que me confundem
num rastro ralo e sem fim.

Defronto a tarefa de quem junta,
criando sentido a partir
de notas puras,
articulando incerto
a exatidão que a história
da língua oferece, como
dádiva que pulsa.

O dia escorre
e a lua redonda desponta
no leste,
mas o papel ainda queda
em pungente desordem.

Rodopio o dedo alçado
na conjuração de todas as potências,
emergindo a fauna selvagem
das palavras nuas e gritadas,
estabelecendo, numa domesticação
precária, o ávido concatenar
do tentativo pensamento.

(Não há subterfúgios
a catar pedrinhas
debaixo do cinza
de um meio-dia abafado
ou de um gelo que afiado
corta a assonância do sol)

Espinhosos e crus,
os sinais deslizam truncados
pela uterina brancura,
regalando as horas
com a latência de um descaso,
uma coceira, uma interrogação,
um espanto ou um estalo.

quinta-feira, 24 de maio de 2012

se cortarmos com uma faca a distância entre nossos olhos

eu vejo
na interseção
do seu olhar
com o meu

o ditoso
e perigoso
desconhecido

a beleza
aterradora
do desfiladeiro
em cada ponto
de contato

a poeira
rebelde
que dança
sossegada
e despercebida

o salto
sem razão
teimosamente
reiterado

o encontro
sempre
provisório
escorregadio
e precário

a comunicação
por fonemas
que se desmancham
no vento
antes mesmo
de se compor
em palavras

a certeza
de querer
uma
e outra vez
decifrar
as lufadas
as brisas
os sopros

tirar
sangue
e carne
do espaço
vazio

domingo, 20 de maio de 2012

O crucifixo na água

Acenando com a íntima mortalha,
despedindo a tenra esperança,
abrindo alas ao crucifixo
disforme de todos os erros,
reverenciados como instigadores
de aprendizes aplicados,
marchamos hirtos por águas
ferozes penetrando os poros,
modelando tendões, amaciando
articulações numa natação
engatinhada que amansa
o peso do passado, assinalado
no contorno de um desenho
escuro e vago, através do qual
a pele se vê instada
a reaprender a respirar,
irrompendo veemente
em maleável envoltório.

quarta-feira, 16 de maio de 2012

A fluida matéria dos seus lábios

O seu sorriso
é uma ávida ampulheta,
um fulgor fugidio
roçando, remoto e tênue,
os meus plácidos olhos.

Numa tácita conformidade,
eles se integram na viscosidade
plástica de sua impermanência
e na plenitude do fluxo
que expira todas as coisas,
inspirando sempre, num
rebelde movimento, novas
e distintas formações.

Envolvido pelo cálido fragor
do sol em seu rosto cravado,
me transfiguro em poeira
numa explosão enfática,
e alço voo reproduzindo
jubiloso o paciente escorrer
do fugaz imorredouro.

sexta-feira, 11 de maio de 2012

no espaço de três respirações

me atirarei no abismo

lá onde medos se enfrentam desastrosos,
comendo chão, bebendo suor e um amargo
e quente vermelho, que gruda na glote
arranhando a garganta engasgada e rouca
no soar dos resilientes trinados

imantações telúricas espreitando em redor
de todas as percepções, penetrando os ossos
sem avisar das consequências custosas
da sustentação do sofrimento em todo
o seu peso, alastrado pelo norte
e daí a todas as direções cardeais

medos que não se sabem medos,
desconhecendo a cravação dos punhais
em suas próprias peles no lacerar
das alheias, entranhas saindo viscosas
sem que as vejam sob a bandana
da empáfia e da ilusão de existências
segregadas, desolação inconsciente
do reprimir da centelha no mais fundo

o disparate aparente, a olhos
desavisados, do mergulhar deliberado
na doença e na morte, vibra aqui dentro
no trampolim para as águas escuras
de escarlate manchadas, reino
de caducas e encarecidas máscaras
idolatradas por miseráveis que se fiam
abastados, mas que cegos e certeiros
preparam ruínas inevitáveis e cabais

absorvo e encaro minha hesitação,
e numa pausa decisiva dobro os joelhos,
dentro de mim o fogo solar,
nas mãos abertas a consciência da dor,
na boca a leveza, nos pés a presteza
e no olhar a certeza do amansar
difícil, vagaroso e tenaz
dos corpos convulsionados sobre
alegrias dilaceradas que,
num salto duvidoso, me proponho
a catar, acolher e juntar

imergindo num resoluto propósito

segunda-feira, 7 de maio de 2012

aferição

guardei as utopias
no escuro da noite

iluminando com discrição
o desolado concreto
os edifícios caducos
da lida diurna

banho de sóis distantes

dando conta
na úmida pupila
da amplitude
do limite
e da fissura

quinta-feira, 3 de maio de 2012

a composição do vidro

o mundo escoa à deriva
por meus dedos perdulários

eu os fecho num relance
e um caldo de ouro e sangue
espirra em meu rosto

caudaloso

me queima num assalto
cálido, gélido e ácido
esculpindo a derme
num horrendo traço

as fissuras carrego
nas sobrancelhas
e nos olhos que fulminam
o caleidoscópio cinzento
das criaturas fraturadas
irmanadas na saudade
dos tempos míticos
de uma paz conjecturada

por meus dedos
se esvai um mundo
cindido, rajado
de anseios frustrados
e amanheceres rosados
no expectante silêncio
de uma lágrima abafada

macerado, caminho
num rincão desprezado
onde uma brisa solerte
me lambe os lábios
modelando um riso gratuito
um arrepio imprevisto
um perfume cintilado

num rodopio
o mundo me atravessa
e arisco me ultrapassa

levo agora
lentes velhas
em minhas mãos
para sempre
calejadas