N'água e na pedra amor deixa gravados
seus hieróglifos e mensagens, suas
verdades mais secretas e mais nuas.

"Entre o ser e as coisas"
Carlos Drummond

segunda-feira, 29 de setembro de 2008

O Basquete

“Não vou pra casa agora”, pensou Eddie, enquanto olhava o relógio marcar sete horas. O combinado é que estivesse em casa às seis, para mostrar os exercícios prontos para a mãe. Mas a precocidade do garoto, que completaria onze anos em menos de um mês, fez-se sentir no adiantamento da rebeldia adolescente.

Era sempre assim nas viagens de Adriana. Ela o carregava de tarefas que iam além das já enfadonhas apontadas pela escola. Tinha que escrever redações e mais redações em português, segundo a mãe, para mantê-lo afiado no idioma materno, que o filho não falava com ninguém fora de casa, tendo ele nascido e sempre vivido em Madri.

Jogava um videogame de boxe com Antonio, colega de sala que era vidrado em joguinhos. Sabia bem que a mãe abominava esse esporte, que lhe parecia uma lamentável sobrevivência das lutas mortais de gladiadores na Roma antiga. Era raro que um lutador morresse no ringue, mas o instinto assassino estava ali, uma barbárie revestida com verniz de civilização.

Depois de muitas lutas, passaram ao tênis, e deste ao joguinho de armadilhas em que se desviavam de jacarés famintos, pulando buracos com cabos que balançavam.

Ficaram nisso até as nove e meia, quando o telefone tocou. Era para Eddie. “É minha mãe”, pensou, e já se preparava para o embate.

– Alô?

– Eddie?

Era Marcela. Protegida de Adriana, a curitibana vivia com os dois há sete anos.

– Vem pra casa.

Desligou. Sua voz estava mais grave do que o normal.

Ele ficou mais meia hora. Seu apartamento era na mesma rua, e não demoraria mais do que alguns minutos para abrir a porta de casa.

Enquanto descia as escadas, ruminava sobre tudo o que havia treinado desde a sexta-feira, dia da partida de Adriana. “A vida é minha”, “Eu posso fazer o que eu quiser”, “Não vou tomar bomba por causa disso”. Foram frases como essas que navegaram livremente pelos pensamentos de Eddie durante todo o fim-de-semana. E estavam ali agora, mais fortes pela constante repetição, sedentas de sair.

Tocou a maçaneta, girou-a, mas a porta não cedeu. Tirou então a chave do bolso, ela caiu. Curvou-se para apanhá-la do chão, girou-a na fechadura e entrou.

Marcela chorava mansamente, sentada à frente de um homem de quarenta anos, que fumava. Eddie se aproximou, olhando, e permaneceu em silêncio.

O homem chegou perto dele, apagando o cigarro.

– A sua mãe...

Marcela desabou em prantos antes que Pablo pudesse dizer mais alguma coisa.

Eddie pensou que não precisava mais se preocupar. A mãe não ia brigar com ele. Sentiu-se, por um momento, aliviado. Podia ser o dono de sua própria vida, podia fazer o que quisesse. Olhou para Marcela, que não conseguia parar de chorar, sem pronunciar nenhuma palavra. Pablo continuava à sua frente. Eddie encarou-o por um momento, e teve compaixão. “Ele perdeu a namorada”, pensou. Começou a sentir-se asfixiado. Lembrou-se da quadra de basquete que havia no bairro vizinho. “Minha bola está no quarto”, refletiu, e então caminhou rapidamente em direção à porta do apartamento. Girou a maçaneta e saiu, com naturalidade.

– Eddie! Eddie! – desesperou-se Marcela.

– Eddie, pra onde você vai? – Pablo saiu atrás do enteado.

Ele, então, sumiu, correndo escada abaixo. Quando Pablo chegou à rua, já não via Eddie em lugar nenhum.

A quadra pública era a três quarteirões dali. “Mas vão me achar logo”, pensou, e decidiu-se por outra que ficava a meia hora de ônibus. A estréia de sua temporada era na quarta seguinte. E o segundo jogo, no ginásio do Real, seria em sua opinião uma prévia das finais. Seus projetos para o ano não eram pequenos. Queria conquistar o título da cidade e ser o melhor jogador. Passou na casa de Felicio e pegou-lhe uma bola emprestada.

A quadra estava vazia, e era favorecida pelo fato de um estabelecimento em frente ser bastante iluminado. Era perfeito para os planos de Eddie. Treinar dribles, domínio de bola e arremessos. Deixou o jogo fluir. Imaginou-se campeão da cidade. Projetou-se sub-17 espanhola. Profissional do Real. Seleção da Espanha. Campeão Olímpico.

Suas fintas, suas trocas de mão, seus passes, suas cestas eram vividas como se fossem em jogos reais. Participava de contra-ataques fulminantes, em que pontes aéreas se alternavam com enterradas espetaculares.

Enterrar. Era o que Eddie ainda não podia fazer. Resolveu-se, então, a enterrar. Começou sem a bola, tentando apenas tocar a redinha. Conseguiu isso nessa noite, pela primeira vez. A sensação foi como um bálsamo. Pensou melhor. “Vou segurar na redinha e enterrar”, e foi o que fez.

Partiu do lado oposto da quadra. Bola na mão direita, sem picar. Mão esquerda livre. Livre pro vôo. Como um Jordan em torneios, visualizou sua primeira enterrada. Partiu. Fez tudo do jeito certo. Enterrou.

Mas a redinha caiu. Machucado, dolorido, desolado, pensou, “eu não vou poder jogar, domingo que vem”.

E chorou. Desesperadamente.

domingo, 28 de setembro de 2008

Parto

Como responderei,
à altura dos seus olhos castanhos,
com a mesma tinta que escreveu tantas bobagens
na pedra
na água
na areia.

Sangue incrustado em lâminas forjadas
nos infernos de sua chama azul-turquesa.

Nestas letras mirradas,
minha carne em tiras selada nos seus envelopes,
escondendo sob fórmulas precárias a certeza
adormecida nas entranhas, como lava.

Em sua luz crepuscular me torno cego,
encontro um guia no seu nome-cicatriz.

Por você penetro em todas as montanhas

sábado, 27 de setembro de 2008

A Sereia

Todo o período de nossas vidas se resume nas reincidentes, e sempre malogradas, tentativas de eludir a realidade. A ilusão primordial, substância de todas as outras, nos faz crer que somos imortais. Desde o garoto que, na carona do carro sedento de perigo, abaixa o vidro e se coloca do lado de fora, impotente em antecipar o violento choque com a parede do túnel, até o piedoso que sacrifica seus parcos recursos ao cesto dourado que lhe dá em troca uma chácara no paraíso, é difícil furtar-se a tão confortável engodo. Dilacerados pela incompletude e insignificância do real, escapamos pela via imaginária, domínio de luzes piscantes e coloridas, onde se ouve o canto ininterrupto das sereias prometendo o impossível.

Certa vez, não me lembro exatamente quando, deparei-me com uma dessas fascinantes criaturas. O que a princípio cativou minha atenção foi seu ar distante e perdido, sugerindo uma diferença essencial em relação a tudo o que a rodeava. Encontrei-a sentada no rochedo, com o olhar vagamente direcionado ao oceano soberanamente impassível e indiferente, cuja superfície o vento suave embalava como a um recém-nascido. Observei-a por um tempo que se fazia de duração infinita, sua imagem ferindo meus olhos assombrados, dando-lhes a impressão de que sua alma era imensurável como a extensão daquelas águas, com uma obscura profundidade pródiga em segredos e estranhas belezas, em que um enlevo fugaz basta para penetrar o inesgotável labirinto onde o homem arrisca perder-se, na ânsia do ardiloso objeto que insiste em desaparecer no momento mesmo em que é encontrado.

Ao notar minha presença, lançou-me um enigmático sorriso, fitando-me fixamente com intensidade hipnótica, esvaziando-me de qualquer pensamento num assalto involuntário. Encontrando-me neste repouso que parecia esquivar-se de todas as injunções temporais, assustei-me quando, num movimento brusco, ela se virou em direção a uma voz que, ao longe, gritava-lhe o nome. Não havia me dado conta de que aquela mulher possuía um nome.

Contemplei então o esvanecer tranquilo da sereia, já restituída aos limites de sua frágil humanidade, despedindo-me silenciosamente, enquanto emergia daquela espécie de distração em que o onírico toma conta do real.

Ondas alvoroçadas dobravam-se sobre as pedras, num trabalho paciente e incansável, e o espetáculo, em sua microscópica totalidade, exerceu sobre mim uma misteriosa atração. Levantei-me e, fechando os olhos, entreguei meu corpo à grande queda, despojado de tudo, sem saber se me esperava a aspereza ou a fluidez.


* Texto escrito em 2003.

A Água, a Rocha, a Rocha, a Água...

Resolvi. Abro um blog, talvez um blog "não-blog". Inicialmente postarei textos antigos, ao acaso e sem regularidade de intervalo. Posso ir postando textos novos, intercalados. Aviso aos companheiros de luta: seus pensamentos sinceros são necessários aqui. Doa a quem doer, agrade a quem agradar.