N'água e na pedra amor deixa gravados
seus hieróglifos e mensagens, suas
verdades mais secretas e mais nuas.

"Entre o ser e as coisas"
Carlos Drummond

domingo, 29 de julho de 2012

a ordenação do aleatório imponderável

o destino está traçado.
não.
os dados estão jogados.
não.
os dados do destino traçam o jogo.
não.
o destino joga com o traçado dos dados.
não.

não tente me explicar o voo dos pombos.
não tente desenhar quadros sólidos no ar.

o céu não cai e os astros orbitam.

os amantes se olham e não sabem o que veem.
o mundo é feito de tentativas quase vãs.

ilusões se acumulam em insidiosas certezas.

na impossibilidade de conhecimento pleno
restam-nos escambos.

enlaces precários se multiplicam
enquanto gira a roda.

o uno e o diverso
se confundem e separam
sem revelar o segredo do movimento.

tanto som, tanto sentido,
e o espanto prevalece.

toda a inutilidade das buscas
padece na revolta dos seres
fenecendo milagrosa
nas mãos do jogador.

quarta-feira, 25 de julho de 2012

Oração à justa humildade

Encara a vaidade
e decanta a autoestima,
queimando o resto
em oferenda à proporção.

* * * * *

(leva, vento, leva,
leva a vaidade,
deixando o critério,
a dignidade e a visão)

terça-feira, 24 de julho de 2012

Incêndio

As chamas me tomaram,
nu em frente ao espelho
que estala afiado,
com seus estilhaços gélidos
penetrando meus olhos
flamejados.

Sangue branco,
de quem revolve
tripas vãs
num cacoete
desgastado.

Finíssimas veias,
crateras de íris,
buracos negros
e centrípetas cegueiras
renovando visões lassas
em imagens táteis
e certeiras.

A fumaça,
vapor de cores
desmanchando
e reunindo
formações
inesperadas
e sorrateiras.

As labaredas
consomem brumas
evaporando cinzas excessivas
em meio a sombras e clareiras,
adormecendo alertas
ao crepitar soslaio
de torpores diurnos,
sonhos esgarçados
e pesadelos fecundos.

sexta-feira, 20 de julho de 2012

indomável, ele escapa como areia seca

o poema
escorrega, como o horizonte
desabala do andarilho que,
não descansando de estrelas distantes,
nuvens negras
ou ofuscantes esferas incensadas,
se furta a armadilhas,
desnudando em plásticos limites
as sombras, as luzes,
a vida inteira,
sonora alegoria
nunca satisfeita,
compondo em linha incerta
sentidos inchados
e esquivas profundezas

segunda-feira, 16 de julho de 2012

a vida móvel dos teus traços

teu rosto

metáfora
do improvável

roçando
arisco
os recessos
fabulosos
da realidade

numa doce
incrustação
de pele
e movimento

desafiando
o tempo
se imortaliza
numa foto

reservando
na maciez
a aspereza
das dobras

teu rosto

metáfora
dos anos

por trás
dos olhos
é a mesma
e não é

em cada vinco
uma memória
em cada pinta
uma falta

no riso
genuíno
a decantação
da dor

a suada
alegria

o sabor
multiforme
da vida

quinta-feira, 12 de julho de 2012

dueto

teu coração, com sua batida alheia,
elusiva, escapando do meu em vão,
enlaçado na pulsante corrente
que o alcança, o encosta
e o imita, num toque uníssono
que ensurdece nosso ardor,
desdobrando em descompasso abrupto
e ritmo renascido
onde toca um, cala o outro,
depois alternando, num marulhar
de sangue fluindo, o contraponto
dos tambores suados, dos címbalos
exauridos, subvertendo o ar
em torno e apressando o alento,
apertando nossos peitos imantados
numa taquicardia extática
que escreve, no tecido das veias,
a partitura insana que transborda
vorazmente o corpo, se alojando
no recôndito da carne,
esculpindo cicatrizes espontâneas
de uma certeza breve,
desaguando no fastio
de um porvir sedento

segunda-feira, 9 de julho de 2012

crucial

a dádiva de um instante
na ardilosa armação da eternidade
transpirando a urgência
que exala a densa fumaça
defrontando sem clemência
a premente decisão

quinta-feira, 5 de julho de 2012

sem tempo para pertencer

me vejo sem data, sem época, ignorante do meu tempo, solto no vento, deitado na praia sob o sol, não sabendo o que vestem à minha volta, o que falam quando se amam, se se apaixonam, se cometem desatinos ou se limitam à embriaguez ordinária, me vejo na água violenta e nado, nado longe, nado e sumo na imensidão de sal e azul

terra me recebe, piso areia úmida à luz da lua, lateja em mim o pulsar dos seres, atravesso o ar palpável, respiro encontros, brinco gritos e solfejos, me armo de ouvidos, umedeço os olhos, constato a estrutura prosaica da minha própria anatomia, numa revelação quebro o relógio e me conformo à plasticidade esquiva das horas