N'água e na pedra amor deixa gravados
seus hieróglifos e mensagens, suas
verdades mais secretas e mais nuas.

"Entre o ser e as coisas"
Carlos Drummond

quarta-feira, 31 de dezembro de 2008

Declaração - Universal?

Neste ano de 2008, a Declaração Universal dos Direitos Humanos, assinada pelos países membros da Organização das Nações Unidas, completou 60 anos (10 de dezembro de 1948).

Trata-se de um documento valioso, uma conquista da civilização frente à barbárie. Porém, está longe de ser uma realidade concreta. Vários de seus princípios ainda não são cumpridos pelas nações signatárias.

A China, país mais populoso do mundo, que vem tendo um crescimento econômico significativo ao longo das últimas décadas, é um exemplo importante, justamente pelo poder crescente na geopolítica mundial, e pelo fato de ser um dos cinco membros permanentes do Conselho de Segurança, órgão máximo das Nações Unidas – o que lhe dá poder de veto em qualquer resolução da instituição. Ou seja, se duzentos países quiserem implementar uma medida, e a China não, a medida será descartada.

Passeei pelos 30 artigos da Declaração, para contar quantos deles são descumpridos pelo governo chinês. Identifiquei nove, e talvez haja outros mais. Transcrevo, abaixo, esses artigos.

Artigo III - Toda pessoa tem direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal.

O primeiro artigo a ser examinado refere-se a três pontos: vida, liberdade e segurança. O primeiro ponto é desrespeitado por um número considerável de países, entre eles Estados Unidos e China, ambos com poder de veto às resoluções da ONU. A pena de morte viola claramente o artigo, que diz “toda pessoa”, e mesmo autores de crimes hediondos não deixam de ser pessoas. Além disso, a criminalidade, que tira vidas, compromete a liberdade de ir e vir e ameaça a segurança das pessoas, está provavelmente presente em todos os países do mundo. Não são apenas Estados que têm o dever de respeitar os direitos (ter direitos implica o dever de respeitar os do outro, como indica o artigo XXIX), mas também os indivíduos. Quando o Estado se omite quanto a direitos básicos como alimentação e moradia (também contemplados na Declaração), torna-se co-responsável pela criminalidade, pois um contexto de carência material favorece (embora não seja a causa necessária) o aumento do número de crimes.

Artigo VII - Todos são iguais perante a lei e têm direito, sem qualquer distinção, a igual proteção da lei. Todos têm direito a igual proteção contra qualquer discriminação que viole a presente Declaração e contra qualquer incitamento a tal discriminação.

Artigo VIII - Toda pessoa tem direito a receber dos tribunais nacionais competentes remédio efetivo para os atos que violem os direitos fundamentais que lhe sejam reconhecidos pela constituição ou pela lei.

Se o próprio Estado não cumpre a Declaração, como protegerá seus cidadãos de violações a ela?

Artigo IX - Ninguém será arbitrariamente preso, detido ou exilado.

Infelizmente, isso ocorre em muitos lugares ainda. Porém, o “arbitrariamente” geralmente se refere a dissidências políticas. São os chamados “prisioneiros de consciência”, que têm como único crime discordar abertamente do governo.

Artigo XII - Ninguém será sujeito a interferências na sua vida privada, na sua família, no seu lar ou na sua correspondência, nem a ataques à sua honra e reputação. Toda pessoa tem direito à proteção da lei contra tais interferências ou ataques.

Recentemente, antes das olimpíadas de Pequim, tibetanos fizeram manifestações pacíficas contra a ocupação chinesa. O resultado foi que os militares vasculharam casas à procura de dissidentes.

Artigo XVIII - Toda pessoa tem direito à liberdade de pensamento, consciência e religião; este direito inclui a liberdade de mudar de religião ou crença e a liberdade de manifestar essa religião ou crença, pelo ensino, pela prática, pelo culto e pela observância, isolada ou coletivamente, em público ou em particular.

Dizer que toda pessoa tem direito à liberdade de pensamento não é dizer muito, pois não é preciso que se formule esse direito para que ele vigore. O artigo está defendendo a pessoa de ser coagida a pensar diferente do que realmente pensa.

Artigo XIX - Toda pessoa tem direito à liberdade de opinião e expressão; este direito inclui a liberdade de, sem interferência, ter opiniões e de procurar, receber e transmitir informações e idéias por quaisquer meios e independentemente de fronteiras.

Quando você é detido por empunhar uma bandeira de um país, como aconteceu nas citadas olimpíadas (no caso, a bandeira era do Tibete), está claro que não há a menor liberdade de expressão. Esse é apenas um exemplo ilustrativo.

Artigo XXI
1. Toda pessoa tem o direito de tomar parte no governo de seu país, diretamente ou por intermédio de representantes livremente escolhidos.
2. Toda pessoa tem igual direito de acesso ao serviço público do seu país.
3. A vontade do povo será a base da autoridade do governo; esta vontade será expressa em eleições periódicas e legítimas, por sufrágio universal, por voto secreto ou processo equivalente que assegure a liberdade de voto.

Novamente, os chineses desrespeitam a Declaração.

Artigo XXX - Nenhuma disposição da presente Declaração pode ser interpretada como o reconhecimento a qualquer Estado, grupo ou pessoa, do direito de exercer qualquer atividade ou praticar qualquer ato destinado à destruição de quaisquer dos direitos e liberdades aqui estabelecidos.

Se é assim, por que um dos principais violadores dos princípios da Declaração é um dos cinco países que, na prática, comandam a ONU?

Há ainda um longo caminho para que o mundo (a China é apenas um dos exemplos gritantes), que cada vez mais é um só, esteja à altura deste precioso documento. Porém, sua simples existência já mostra um grande avanço dos princípios civilizadores. A educação deveria explorar mais o estudo dessa Declaração, incutir nos estudantes a consciência e o respeito aos direitos básicos do ser humano.

sábado, 6 de dezembro de 2008

Sobre mãos e pássaros

“Mais vale um pássaro voando do que dois na mão”. Era essa a filosofia de Almeida Júnior, embora ele não a formulasse tão claramente. Sempre insatisfeito com o que tinha, abria mão do certo em favor do duvidoso e se, por graça ou por empenho, alcançava o que queria, perdia o que tinha antes e, em pouco tempo, o que obtivera em seu lugar.

Seus relacionamentos eram sempre frustrados, a partir do momento mesmo em que os iniciava. Saindo com a namorada, seus olhares não se dirigiam a ela, mas, cobiçoso, secava todas as outras que passavam à sua frente. Suas parceiras não deixavam de perceber isso e, em poucas semanas, terminavam tudo. Mas isso não lhe importava, pois a essa altura já não estava mais interessado. Com o trabalho era a mesma coisa. Não passava mais do que um mês e já estava dando telefonemas e lendo os classificados.

Até que adoeceu. No hospital, sem nenhuma visita, cansava-se das enfermeiras que o atendiam, querendo sempre a do leito vizinho. Fazia escândalo, reclamava, e almejava a doença do paciente a seu lado. Certo dia, chegou uma mulher em péssimo estado. Mal conseguia ficar acordada. Almeida fez o que seria seu derradeiro gesto. Levantou-se e, delicadamente, beijou-a, de língua.