N'água e na pedra amor deixa gravados
seus hieróglifos e mensagens, suas
verdades mais secretas e mais nuas.

"Entre o ser e as coisas"
Carlos Drummond

sexta-feira, 21 de maio de 2010

A rotina surrada dos relacionamentos acabados (em clichê sustenido menor)

Precisamos conversar

O telefone, esse ensurdecido sádico, num súbito transe acordou-me com seu murmúrio aflito. A escolha das palavras, o tom da voz e o ritmo das pausas não concediam dúvidas. Às nove horas seria o fim. Não contemplaríamos as estações, o Sol, a Lua ou as estrelas. Não dissertaríamos sobre moral vitoriana, utopias sociais ou dadaísmo. Não nos esqueceríamos no fascínio das flores carnívoras. Seria uma conversa inédita. Antiga, muitas vezes repetida, mas, pela primeira vez, rugosamente fluindo entre nós. Como ia sair, se ia descer, as horas diriam.

Não é você, sou eu

Ela não conseguiu driblar o desamparo dos que rompem. Eu entendo, respondi, é você mesmo. Quem é que chamou quem? Se fosse eu, não chamaria. Seus olhos cabisbaixos denunciavam tristeza e remorso. Afeto, não amor, muito menos paixão. Tudo estava morto. Ela trazia a pá, cavava o buraco, o jardim ao lado apropriadamente oferecia flores frescas. O cenário sublime exalava melancolia, meus olhos... não alcançavam os seus, impenetráveis flamas negras.

Não seja um estranho

Claro que não, prometi, momentos antes de dar-lhe um abraço sem sal e me afastar sem hesitação. Celular fora do bolso. Contatos. Setas para baixo. Seu nome. Opções. Apagar. Tem certeza? Ok. Amanhã é um novo dia, pensei, contaminado pela avalanche de lugares-comuns que me enterrava numa neve de ausência. Vou descer à cabana e me esquentar na lareira. Uma hora gelo, uma hora fogo, outra hora água. Depois de ensopado, seco. Até a próxima gota.