N'água e na pedra amor deixa gravados
seus hieróglifos e mensagens, suas
verdades mais secretas e mais nuas.

"Entre o ser e as coisas"
Carlos Drummond

sábado, 31 de dezembro de 2011

2012

Que os nossos olhos
chorem
a dor dos que não
conhecemos.

Que as luzes não nos ofusquem
as trevas
em que tantos agonizam.

Que sejamos antepostos
aos ventos,
para que as chamas que acendemos
iluminem e aqueçam
os rostos que clamam.

Que nossas mãos se estendam
com oferendas sinceras,
nossos braços se ergam
ante os abusos,
mantendo-se firmes, combativos
e sempre engajados na paz.

Que amemos mais e melhor
os próximos e os distantes.

Que nossos pensamentos sejam verdadeiros,
nossas palavras justas
e nossos atos reparadores.

terça-feira, 27 de dezembro de 2011

Belo Horizonte

Uma cidade
não é apenas
uma cidade

ela está tanto nos discursos
nas mentes
quanto nos prédios
e esquinas

As ruas
onde em becos desenrola

não é uma novela das oito

parece mais o cronicamente inviável
ou outro filme
que vi no Belas

“não é um cinema fino?”

ouvem-se disparos
“da polícia?”
“do bandido?”
“do menino?”

e naquele mesmo beco
um herói anônimo
respira pela última vez

Tinham-lhe dito
que o crack
era uma mesmice inquietante

como um relâmpago
no edifício desolado

em uma noite perdida
como a serpente

“descer bahia,
subir floresta”

como poderia eu
ver a cidade
sem meus próprios olhos

“sempre que vou a uma cidade”
dizia ele
“tenho que ir ao cinema”
é um modo de conhecer

porque se eu morasse ali
iria ao cinema

faria compras
abasteceria o carro
pagaria contas

“sempre que vou a uma cidade”
dizia ela
“tenho que ser assaltada”
é um modo de conhecer

porque se eu morasse ali
seria assaltado

iria a um bar arrumado
sentaria num banco de praça
beijaria uma boca nativa

Em minha cidade
já fiz tudo isso

“descer floresta
subir bahia”

é uma vertigem
cercada de montanhas
por todos os lados

e os engenheiros

foi onde ouvi
minha primeira música
esquecida

quando meus ouvidos
eram puros

e meu grito
como o som de muitos mares

onde andei
no 9101

em que eu costumava anotar
todas as minhas impressões
num caderninho

e chegava na francisco arantes
com perfume de dama-da-noite

domingo, 25 de dezembro de 2011

Sinfonia em uma rua da tragédia

Um assomo de incertezas
faz dobrar a esquina
de obliquidade escassa,
guiando-se nos raios
que os postes molhados
derramam nos para-brisas.

Notas de esquecidas canções
largadas no carro aberto,
abandonado,
numa confiança descuidada
anacrônica, perdida, deslocada.

O céu
quer jorrar sua própria canção
seus cinzas, seus claros, seus escuros
dançando a toada de
água, peso e gravidade
inundando avenidas,
invadindo armazéns,
transbordando bueiros,
deslizando encostas.

Concerto indiferente
desconsiderando planos,
delineando invenções compulsórias,
regendo, inesperado,
vozes, lamentos, gritos,
demandando fortalezas
sem pedir licença.

segunda-feira, 7 de novembro de 2011

O flerte

gosto
de misturar
uísque

com rivotril

ponho
os comprimidos
no copo cheio

espero dissolver

(enquanto a vida escorre)

ameaço

e jogo fora

me dá
uma sensação
gostosa

de escapar
sorrateiro

e renascer

(enquanto o mundo torna)

segunda-feira, 31 de outubro de 2011

Aliança

Ainda assim acredito
Ser possível reunirmo-nos
Num outro nível de vínculo*


Ele queria que o amor reinasse e que todas as pessoas fossem irmãs. Ela queria que, mais do que irmãs, fossem amigas.

Ela sabia que ter o mesmo sangue não era prova de amizade.

Ele e ela não eram tolos. Sabiam que morreriam sem ver o reinado que desejavam. Sem pertencer a ele.

Ele acreditava que, um dia. Ela acreditava num dia antes. Talvez depois.

O tempo era o aliado, ou o algoz.

Sonhos não precisam ser crenças. Crenças não são certezas, nem convicções.

Ele e ela eram simples. Quando escreviam, expunham-se, arriscavam-se, tentavam-se.

Desnudavam-se.

Não há vaidade quando tudo o que está em jogo é viver.

* "Oração ao tempo", de Caetano Veloso.

domingo, 16 de outubro de 2011

Delineações sobre os contornos de uma voz

I – A Brisa

Foi como um leve sopro
O beijo da brisa levou
Longe, além do mais além

Veloz como os dedos de um amante
Carregando tempo, espaço,
Oxigênio, impurezas transmutando
No lépido enlace do ar

Paisagens despontando, amplas,
Revelando distâncias ao alcance da mão
O vento das possibilidades

Arrepios no toque, fios eriçados
Resvalando suaves, enleios
Plenos de súbitos arroubos
Espasmos de gozo arrebatando os sentidos

II – O Vulcão

Desperto, acordado de dormência,
Vermelho, viscoso e quente
Demandando liberdade, em fúria

O vulcão, antes só e absorto,
Reúne as forças primitivas,
Primordiais, no ímpeto do nascimento
Do que foi e sempre será

Nada que possui restará intacto
Sob a caudalosa lava, esfumaçada,
Fim de certezas, anseios ascendendo

No ardiloso painel de durezas
O céu, nebuloso e prenhe
Sentidos vitais pulsando fortes
Arde o elã, arde o ar, arde a vida

III – A Floresta

Remanescentes numa selva obscura
Sombras frescas, raios de luz
Penetrando a densidade das folhas

Feras circundando troncos
Lascas de madeira protegendo a seiva
Mortes, matanças, subtrações de cadeia alimentar
Venenos, garras, presas, brenha inóspita

Ela entra, desconsiderando lógicas,
Sacerdotisa erótica das forças naturais,
Emblema selvagem de feminilidade esguia

Armada com o que o peito carrega
Luz dourada iluminando o breu
Castanhas, frutos, flores silvestres
Adornando soberana, pés descalços sob a chuva

IV – O Penedo

Ela ascende, numa escalada intrépida
O frio do vento nos cabelos soltos
Coração pulsando, vigorosas passadas

Transpondo esforços, pernas cansadas
Resistindo às pedras lisas
Mochilas abertas, cabos, botas pontiagudas
O abismo sob a calma fugidia

Da peregrinação ao topo, divisando
A imensidão almejada, num suspiro
Erguendo os braços, recolhendo o louro

Sem verde, sem perfume, sem coroa
Louro vermelho, percorrendo as veias,
Vida aspirada renovando o impulso
Grito de vitória ecoando pelo vale

domingo, 9 de outubro de 2011

Nuvens concretas

Emoldurando nuvens, eu sentia o gosto do aço gelado, resmungando elogios sem entusiasmo, revirando gestos na procura da melodia original, alternância insólita e súbita de paisagem e chuva, tresloucadas ponderações imunes a qualquer convencimento, novelos enrodilhados à espera de agulhas, resfolegar no compasso de percussão ensandecida, passos calmos e seguros na corda estendida, visão de abismo sob os pés dormidos, ímpeto contido de perseverança, alvo agarrado na certeza da passada.

sexta-feira, 9 de setembro de 2011

Ao desconhecido

Como um peixe de rio no mar
Uma brisa no vento

Ou um sorvete nos polos

Ele olha o firmamento escuro
Seus desenhos de luz

Um caçador
Uma balança
Um arqueiro

As patas de um cavalo alado

Resíduos de astros cortam o céu numa chuva

Na infância, realizava desejos
Alucinações antecipatórias

Brincava de massinha
Moldando seres e objetos

Colocava fogo
E atirava no chão

Pra ver se quebrava

sexta-feira, 22 de julho de 2011

Jogando palavras como pedrinhas no lago

Estrondo.
Vulcânico.
Água fria.
Lisonja ferida.
Almanaque de interrogações.
Bosque de certezas silvestres.
Alumínio recheado de sal.
Asas.
Iluminação num ataque de surpresa.
Tortas na mesa cheia.
Cílios no queixo molhado.
Lampejos de permanência.
Até cinco, até seis, até sete.
Cabeça furando onda num mergulho impávido.
Jacaré.
Sem beber água, nem respirar.
Soslaio.
Descanso.
Serenidade.

Luz

terça-feira, 10 de maio de 2011

Rasgando as garras da noite

O lince
com suas presas salientes
rasgando as garras da noite
numa dentada insana

Lençol de luminosidade fluindo
sangue negro de madrugada
brilhando em movimentos
elípticos e harmoniosos

Língua sorvendo
o líquido viscoso
caudaloso misturando
pontos de luz e breu

Garganta deglutindo
até nada sobrar
sua boca tem agora
o gosto da noite

segunda-feira, 25 de abril de 2011

6x6 (Fevereiro, 2011)

"Isenção"

Povo unido nas ruas: golpe militar.


"Azul"

Vermelho salpicado na pele, sangue real.


"Revolução"

Anos de ódio, amor ascende imortal.

quinta-feira, 7 de abril de 2011

O mar nem sempre é o mesmo mar

O mar
Nem sempre é o mesmo mar
Ondulando nas águas e no sal
Verde ou azul
Ou transparente
Levado pelo vento
Sem saber de calmaria
Não onde a terra se desdobra
Não onde a rocha se descola
Nunca a areia será tão branca
A rivalizar com a espuma
E nunca o silêncio será tão forte
A rivalizar com vento e água

Cada um tem o seu mar
Cada um tem o seu silêncio

sábado, 2 de abril de 2011

The red cloud

Unknown to envious eyes
Skillfully bent, to stupefy
Fleeting, for most unseen

A leisure, rupture on anything
Deaf-mutes shouting, closed eyes seeing
Counter routine, looking from high

like a colorful cloud
breaking the frozen blue sky

sexta-feira, 25 de fevereiro de 2011

6x6 (Janeiro, 2011)

"Lixo"

Engravatados nas ruas, inundações na capital.


"Bombando"

Estrela espirra desprevenida - amanhã nas bancas.


"Morangos"

No balanço, descalças donzelas, cheque-mate cinza.

sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011

Explosões de oxigênio e magma

Perseverando, na labuta infindável, lampejos de céu azul guiando a sóbria loucura, renascendo de cinzas vermelhas, a multidão um arco para flechas inflamadas, pinceladas vigorosas, areia molhada esfregada no corpo da sereia, canto estridente e grave, constelações velando a calmaria, ventos subterrâneos, calor e frio debatendo-se vorazes, na superfície ondas, espuma, sal, caldeirão gelado derramando perfumes, desafios lançados, buracos negros, supernovas, galáxias iluminadas girando elípticas, grito no vazio, silêncio, cogumelos mortais ferindo a terra, vida saindo das profundezas, andarilho em trevas, mapas rasgados, incendiados, fogueiras em clareiras confortando a noite

segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

The Mermaid

The whole period of our lives consists on the repetitious (and always frustrated) attempts of eluding reality. The primordial illusion, origin of all the others, makes us believe that we are, somehow, immortal. From the teenager that, passenger in an eager for danger car, puts himself out the window, only to violently collide in a tunnel, to the pious that works hard to donate considerable part of his income to the basket that earns him a piece of heaven, it is difficult to resist such a comforting lie. Shattered by the incompleteness and insignificance of reality, we escape through the imaginary, full of winking and colorful lights, where we hear the uninterrupted chant of mermaids promissing the impossible.

On a certain occasion, I don’t remember exactly when, I came across one of those fascinating creatures. What initially caught my attention was her distant and lost gaze, suggesting an essential difference in relation to everything around her. I found her sitting on the cliff, her eyes vaguely directed to the silently placid and indifferent ocean, whose surface the smooth wind rocked like a new born child. I watched her for a duration that seemed infinite, her impacting image wounding my astonished eyes, giving the impression that her soul was as immense as the water’s extension, with an obscure depth filled with secret and strange beauties, in which a fleeting desire is enough to penetrate the endless labyrinth – an uncertain region where men risk losing themselves, in their thirst for the mischievous object that insists on disappearing at the very moment it is found.

Noticing my presence, she cast me an enigmatic smile, gazing fixedly at me with hypnotic intensity, making me empty of any thought, in an involuntary assault. Finding myself on this refuge that seemed to escape all temporary injunctions, I scared myself when, in an abrupt movement, she turned her face to a voice that, far away, cried out her name. Until then, I hadn’t realized that woman could have a name.

So, I contemplated the calm disappearence of the Mermaid, already brought down to her fragile humanity, silently saying goodbye, as I woke up from that sort of distraction in which the oniric seems to take over reality.

Furious waves shocked themselves against the rocks, in a patient and untiresome work, and the scene, in its microscopic totality, had over me a mysterious attraction. I got up, and, closing my eyes, threw myself to the grand dive, bare of everything, not knowing if I expected the solid roughness or the maleable fluidity.

segunda-feira, 31 de janeiro de 2011

Obrigado pela minha gratidão

Obrigado, Vida. Vida, que não sei se é Deus ou se é natureza, recordo-me de faltas, falta disso, falta daquilo, falta de um não-sei-o-quê, de um não-sei-quando, de um não-sei-aonde. Hoje, aqui, tudo o que tenho é gratidão, e nada me falta. Eu me encharco nela, nado, brinco espirrando água, dou cambalhotas, seguro a respiração até não mais aguentar. Saio molhado, pingando, desabrigado de toalha sob o frio e o sol poente. A noite vem, planetas, estrelas, constelações, galáxias, o universo. Tudo isso existe. Eu existo. Você. Nós todos. Como Alberto, alegro-me com as pedras e com o passar do vento, gotas de orvalho brotando nas folhas, calor de lenha aconchegando a pele. Sou-lhe grato porque sempre, por baixo e por cima de tudo, alguma coisa resta por agradecer. Sou-lhe grato porque a gratidão que sinto me torna pleno e vivo. Sou-lhe grato por agradecer. E, se eu pudesse escolher como retribuir tanta gratidão, eu lhe pediria – que todos encontrem, como eu, sempre, algo a agradecer, e que a gratidão, essa sublime abençoada, seja o nosso ramo, o nosso prumo, canto doce louvando a eternidade.

sábado, 22 de janeiro de 2011

Cuba libre!

A noite era fresca e convidativa. Eu e meus homens, incumbidos de transformar o ano-novo dos imperialistas em poeira, fazíamos cerco à residência oficial do embaixador, um idiota arrogante que não via o tapete escorregando sob os pés. A meia-noite se aproximava e o clima era tenso. Tínhamos que pisar na ponta dos dedos, para flagrar desprevenidos centenas de anglófilos, que sucumbiriam ante a potência de nosso arsenal sanguinário. O pio do cuco soou. Pelo norte, pelo sul, pelo leste e pelo oeste, demos marcha à invasão, sincrônicos. À medida que nos aproximávamos, a música aumentava, e mal podíamos ouvir nossos próprios pensamentos. Mas eles eram claros. Ninguém sairia dali. Ninguém que respirasse.

Entramos desabalados, nossos urros se equiparando às notas do gramofone. Exploramos as salas, penetramos os quartos, conferimos os banheiros, checamos as sacadas. Luzes acesas, nenhuma sombra humana.

– Vazia, comandante!

Com um sinal liberei a horda. Lustres, mesinhas, cadeiras, poltronas, quadros, esculturas, pratos, copos – nada escapou à carnificina. Eu e três subordinados imediatos nos dirigimos à cozinha, cacos de vidro estalando sob os pés. Uma grande porta de madeira escondia uma despensa. Ordenei silêncio. Armas em punho, preparados para uma emboscada, abrimos a porta. Dezenas. Dúzias. Centenas de garrafas da bebida imperialista repousavam inertes no chão de lajota, sob um armário com inúmeras taças.

Um frenesi tomou conta dos comandados. Partiram ávidos, largando a artilharia para apoderarem-se, sádicos, dos vidros e cristais.

– Não!

Eu tinha uma ideia melhor.

– Mande José e Manolo à cidade.

O resto dos homens chegou aonde estávamos. Seu ardor era tal que foi difícil segurá-los.

– Feche esta porta!

A casa, cansada, não apresentava mais nada a ser quebrado. Os homens, entediados, não compreendiam minha atitude. Por que ser condescendente com os imperialistas, perguntavam. Começavam a duvidar de minha lealdade à causa revolucionária. Mas logo Manolo e José voltaram. Traziam litros e litros de nossa aguardente libertada. Havana, tomada, embriagada, comemorava com tiros a derrota dos miseráveis.

Levei todos ao salão.

– Manolo, traga a bebida imperialista! José, distribua nossa aguardente!

Dispostas na enorme mesa, taças e mais taças, que estariam na boca dos imperialistas, foram enchidas com a gaseificada poção negra. Os homens, brandindo suas garrafas, interrogavam-se, perplexos, na expectativa.

– Hoje, neste antro reacionário, viemos acabar com a besta peçonhenta, com os parasitas do norte! E o que encontramos? Nada! Covardes, decepcionaram cada um de nós, que queríamos ver seu sangue jorrando de seus pescoços, suas tripas saltando de suas entranhas! Mas que eles saibam que, o que deixam para trás, nunca mais será o mesmo! Eu os convido, companheiros, a deixar a marca de nossa Ilha em tudo o que antes veio manchá-la! É o que eu vou fazer, agora e para sempre!

Derramando o destilado nas taças, ergui um cristal assoberbado. O grito, coletivo, soou na madrugada de janeiro, acompanhado por tiros, urros e um gosto novo, totalmente novo, de doce vitória.

sábado, 15 de janeiro de 2011

O sueco é a língua mais bonita do universo

Estava, há pouco, revendo Através de um Espelho, um filme do fascinante país escandinavo, cujos personagens parecem instrumentos e expressam a história em fluência musicada. Parando para pensar e consultar os lembretes da memória, eu diria que vi uns treze filmes suecos. Cineastas suecos? Hmm... deixa eu ver... quantos mesmo? Ah, um. Como posso ter esquecido? Mas, eu dizia, não existe no universo língua mais bonita que a sueca. Alguém, conhecendo parcialmente a minha biografia, diria que a ideia é influência das bandas de Estocolmo e imediações, que eu escuto inflamado. Lesado engano. As referidas bandas, TODAS, cantam em inglês, malfadada dicção semi-universal do mundo pós-moderno. Outro, desconhecendo minha biografia, diria que fui abduzido pelas pornozadas e mulheradas e alouradas, tão afeitas ao espírito viking. Ao leitor das primeiras linhas, revelou-se que a língua sueca me enlaçou pelos sons que produz, inserida no conjunto mais amplo de ar, vibração, entonação, ressonância e imagem. Nesta segunda apreciação de Através de um Espelho, escondi as legendas. Epifanicamente, deparando-se meus ouvidos com uma absoluta privação de semântica, a melodia, o ritmo e os contornos desse Sueco, desfrutados como novos, assombrando-me com toda a força do convencimento, não guardaram lugar para incertezas: Sasom i en spegel. O sueco é mesmo a língua mais bonita do universo.

quarta-feira, 12 de janeiro de 2011

Uma noite vaga

Percebo, através do sinal vermelho, que estava prestes a entrar na contra-mão. Corrijo-me no verde, mas já não sei onde estou. O rádio toca o obscuro doom de alguma banda sueca ou francesa, cantado em inglês. O limpador de pára-brisa lentamente afasta as gotas acumuladas, o chão molhado brilha refletindo a luz dos postes. “Faltam quarteirões”, penso, e olhando as horas no painel duvido que chegarei a tempo. Sem direção, sem mapa, sem gps, sem qualquer forma de orientação no espaço, achego-me ao tempo. “Não tem importância”, avalio depois de vários minutos. “Não vai dar pra chegar”. Desobrigando-me de qualquer objetivo, de qualquer razão para estar dirigindo àquela hora, naquela noite, eu apenas sigo. Vejo setas apontando para a direita, para a esquerda. Escolho a esmo, sem saber se ando em círculos. É um instante perdido numa noite vazia. É catártico saber que, enquanto uns se preparam para a manhã de dia útil e outros se apertam em sapatos desconfortáveis, eu vagueio. “Vagueza é sinônimo de riqueza”, dizia Federico. Enxergo isso agora, entre letras e acordes funerais. “Qual é a riqueza deste momento?”, olho no retrovisor. À minha frente o sinal novamente fecha, há luzes fortes no posto de gasolina. Um desgarrado sedã se acomoda ao meu lado, com vidro fosco. É em seu reflexo espelhado que o verde se derrama, pouco antes de não restar nada. À minha frente vejo a lagoa.