N'água e na pedra amor deixa gravados
seus hieróglifos e mensagens, suas
verdades mais secretas e mais nuas.

"Entre o ser e as coisas"
Carlos Drummond

terça-feira, 1 de setembro de 2015

O leme roto dos meus passos

O amor é como andar num lago congelado, cuja superfície nunca se sabe se vai se estilhaçar sob os seus pés. A sua entrega é como um sol que se aproxima e te arde, te enche de vida e de espasmos, sobressaltos no chão que se grudava aos seus pés e começa a escorregar, a transpirar, fica mais fino, refletindo como o gume afiado de um punhal essa luz que cega e desnorteia. Eu dou um passo, qualquer passo, mas não alcanço as margens, sequer as vejo, é tudo clarão e sol e gelo derretendo.

Mas nada disso parece importar ao meu amor. É como se suas solas fossem mais frias do que o cume das montanhas, regelando sem medo o que pisa, tudo abaixo de suas pernas solidez e espessura. É como se o que me separasse do fundo daquelas águas fossem somente suas mãos ásperas que me seguram como garras a uma presa. Eu não quero mais deslizar nesse arremedo de solo, girando desgovernada a confiar em braços que podem não ter tanta força assim, tanto fôlego assim. Nunca reparei se eles são torneados. Os seus dedos são leves e obstruem a percepção de qualquer traço de intumescimento, ainda que poderosamente comandem os meus poros rendidos. É desse poder que preciso fugir, é dessa mescla de gelo e sol que subtrai todas as certezas, é desse ardil de um deslumbramento  que me deixa a todo o tempo suspensa e sem aprumo.

É se afastando do abismo que irá atravessá-lo? Não confia na confecção de suas próprias redes? Esse chão não precisa ser gelo e esse sol não precisa incinerar o coração dos seus alicerces. Você é o seu próprio solo, e o seu material pode ser temperado como o aço da siderurgia mais pura.

Eu não possuo o segredo dos metais, nem o sangue dos viadutos. O sol sobre o meu corpo é o mesmo que queima o rosto dos vampiros, meu gelo é o da temperatura que pulsa no limite da fusão. Suas palavras se chocam com o meu entendimento, seu tom sincero não penetra as veias do meu otimismo moribundo. Dele só restam artérias que se rasgam em fendas, tingindo a pele de um vermelho que se desbota como a palidez crescente do meu peito em seu compasso lento.

Eu vejo cor e movimento em seus condutos expostos, névoa imprópria entre suas pálpebras e um colar de espinhos que se descola de sua garganta a cada grito baixo com que destila a sua angústia. Se mirasse num espelho limpo suas feições no fluir dos desabafos, observaria a tez corando e olheiras se desvanecendo, ainda que a sutileza das alterações não registrassem na vista qualquer diferença. O meu olhar e a minha escuta são esse espelho, sua presença e fala vigorosa a sua mirada. Não fujamos desse lago e do desafio de suas águas. Sejamos nautas de nossos próprios barcos, construídos com paciência e esmero na companhia do tempo elaborado, feito amigo na intimidade da confidência.

Os remos se esquivam do aperto de minhas mãos, que clamam bandagens para as linhas retorcidas de suas palmas. Os ventos se alternam entre tornados e calmarias totais, numa instabilidade misteriosa que ultrapassa qualquer meteorologia. Não sei se esta jangada sustentará a carga das minhas obscuridades, mas ofereço, no limite das minhas forças, o leme roto dos meus passos à travessia de linguagem a que nos lançamos.