N'água e na pedra amor deixa gravados
seus hieróglifos e mensagens, suas
verdades mais secretas e mais nuas.

"Entre o ser e as coisas"
Carlos Drummond

domingo, 30 de dezembro de 2012

Por um 2013 com muitos xeques



Nós morremos a cada momento.
A cada hora.
A cada dia.

Nós nascemos a cada dia.
A cada hora.
A cada momento.




Notemos a Morte ao nosso lado, a todo instante.



Sigamos seu conselho, viva,
enquanto não nos conduz ao Desconhecido.



Deleitemo-nos no tempo incerto que respira à nossa frente. 

O xeque-mate é Meu e te aguarda sorrateiro, Ela avisa.



Mas os xeques estão em nossas mãos e em nossos espíritos.



Multipliquemo-los até o fim, embora o Rei não se abata.

Dar xeques não chega a ser enganá-La.



A cada vez que A ameaçamos, ainda assim, estamos ganhando a partida.




Ser pleno é jogar inteiro no fluir dos movimentos.

Um rei que luta até o fim, abraçando a falta de qualquer alternativa, a incorpora, plenifica-se no espaço vazio.



Dancemos, de mãos dadas, jorrando o canto belo e o sublime gorjeio.


* Fotogramas de O Sétimo Selo, de Ingmar Bergman (1957)

terça-feira, 25 de dezembro de 2012

nutrição

quero
incorporar
a simplicidade
extraindo a verdade
(uma seiva)
que às escondidas
sulca e condiciona
a superfície telúrica
do meu entendimento

quinta-feira, 20 de dezembro de 2012

Sentidos planam rugosos, fecundando a terra com resíduos

Acredite
no vento leve
do compromisso
com a suave revoada
de palavras doces
e frases idílias.

Perfure a casca
do sonoro envoltório
que se desmancha
em notas sugestivas,
saboreando os recheios
do acorde a ser mordido.

Escave atento
incandescentes pedras,
atingindo lençóis
como depósito
de crocantes adubos,
renascidos
de inférteis tentativas,
escondendo,
nos pulmões da terra,
com cândidas pisadas,
poesias incubadas
e odes embriãs.

Brotando ao longe,
de amaciadas superfícies,
exclamações incertas,
insuspeitadas vias,
decorrendo rondas sucessivas.

sábado, 15 de dezembro de 2012

Nos deram espelhos...

Calcular
uma obscuridade alimentada
em imagens e simulações,
é como interpretar,
subjetivamente,
uma equação exata.

Hipotética conta
que nem os deuses antecipam,
confusão de vontades,
liberdades, estímulos
e feridas.

Especialmente,
feridas.

A incompreensão
e a indiferença grassam,
enquanto cruzamos braços,
entortamos línguas
em despropérios,
absolvemos em nossas sombras,
tênues, talvez,
frente à insanidade execrada,
tudo o que nos cega
no reflexo de nossas vísceras
se dizendo inocentes,
nossa ilusão de impecáveis
sentidos.

Chorar,
consternar-se pelas crianças,
pela dor absurda,
pela pontada de uma espécie
fracassando.

Chorar,
olhando dentro,
que a aguda tortura
pode estar perto,
sorrateira e ardilosa,
mais do que perto,
não havendo indignação
tão poderosa,
inerte e solitária,
a resolver em higiene
um mundo manchado,
um corpo
de relações leprosas,
amontoado de fios rasgados
de desgovernadas agulhas,
talhas esfoladas
numa nudez sem direção.

segunda-feira, 10 de dezembro de 2012

Gelo opaco não dá conta do real

Saio às ruas
e tudo o que vejo
são pontas.

Ouço barbaridades,
presencio atrocidades,
pontas.

O que
se esconde
sob águas tão geladas,
queimação inversa
de corpos mornos,
chagas abertas
que se esquecem de si
mas não arrefecem.

É inútil
amaldiçoar o gelo afiado,
afeiçoar-se à superfície,
nadando em julgamentos rasos
de suportáveis temperaturas
aquém das regiões
abissais.

Degelar
o mistério, evaporando
precipitações valorativas,
descortina uma compreensão
que atravessa os prejuízos.

quarta-feira, 5 de dezembro de 2012

Cinologia #2

Elogie
as boas atitudes.

Não custa nada,
e cria felicidade ao redor.

A cumplicidade
é construída no bem-tratar.

sexta-feira, 30 de novembro de 2012

Cinologia #1

Não dê ao seu cachorro
o que ele quer
na hora que ele quer
ou se prepare
para mordidas
futuras.

domingo, 25 de novembro de 2012

Democracia da manipulação

O sistema eleitoral brasileiro possui várias características que tornam o processo democrático falho, distorcido e tendencioso.

A intrusão de interesses da iniciativa privada, na apresentação à população de candidatos a cargos políticos, transforma o que poderiam ser escolhas independentes em escolhas inconscientes, frutos da manipulação da opinião pública.

Isso se dá pelo sistema de financiamento das campanhas, pela propaganda desigual, pelo marketing, pela sugestionabilidade das pesquisas de opinião e pela falta de transparência.

Os candidatos a cargos políticos recebem doações da iniciativa privada para financiar suas campanhas eleitorais. Infelizmente, poucos são os empresários (ou mesmo, em alguns casos, criminosos) que têm em vista o bem-estar da população como um todo, ao investir em um ou outro candidato. Via de regra, depois de eleito, o político irá, de alguma forma, ilegalmente, retribuir o favor a quem contribuiu para colocá-lo no poder, em detrimento dos interesses da população. Além disso, como a desonestidade de um político como esse se torna evidente, o mais provável é que aproveitará sua posição para beneficiar também a si próprio, praticando corrupção e desvio (roubo) de recursos públicos a que terá acesso.

O financiamento das campanhas é usado basicamente na propaganda. Os candidatos investem em marketing, para apresentar-se como o melhor “produto” para a escolha do cidadão. Publicitários profissionais são contratados, e a atenção se desloca, das questões problemáticas da sociedade e a maneira com que cada candidato se propõe a lidar com elas, para a criação e difusão da imagem mais atraente. Através de jingles, imagens cinematográficas, slogans, sorrisos em abundância, e todos os demais elementos da publicidade, repetidos à exaustão na mídia, as candidaturas são “vendidas”, num jogo de aparências que manipula o eleitor, produzindo e recorrendo a uma emotividade que nubla a tomada de consciência necessária para se fazer a melhor escolha.

Como se não bastasse, as doações podem ser anônimas, sendo revelados os nomes dos doadores meses após a conclusão das eleições, o que denota uma danosa falta de transparência.

Na proposta de financiamento público de campanha, combatendo as distorções dos investimentos privados, as verbas são divididas entre os diversos partidos e candidatos, assegurando igualdade ou proporcionalidade de verbas direcionadas à propaganda eleitoral. A apresentação dos candidatos seria estritamente limitada a discursos, sem músicas e sem nenhuma imagem além da do emissor da mensagem. Com o mínimo gasto, cada candidato teria um tempo para falar, ou convocar personalidades para falar, num estúdio modesto – compartilhado por todos – e sem qualquer elemento de marketing. Dessa forma, a população poderia se concentrar nas questões, nas propostas e históricos dos candidatos, atendo-se a uma abordagem mais objetiva. A austeridade do formato de apresentação garantiria o menor dispêndio possível para os cofres públicos.

Poderia ser levantada a objeção de que, caso o Estado fosse o provedor das verbas para a propaganda dos candidatos, os governantes da situação privilegiariam seus correligionários, em detrimento da oposição. Porém, isso seria facilmente percebido e sujeito a denúncias, pela própria natureza da publicidade. A propaganda é feita com o objetivo de chegar às pessoas, e, se um partido ou candidato tiver mais espaço que outros, isso se tornará evidente. Além disso, as leis devem ser feitas para serem as melhores e as mais justas, independente de serem fáceis ou difíceis de cumprir.

Outro problema grave surge quando o candidato que está no poder se utiliza de recursos públicos para financiar propagandas de seu governo. Não se trata, aqui, da proposta de financiamento público de campanha, uma vez que, nesta, os recursos são divididos entre os diversos partidos e candidatos. No caso da propaganda estatal, somente um lado da questão é apresentado, o que configura uso da máquina de governo para autopromoção, desequilibrando as forças eleitorais, com dinheiro que deveria ser aplicado em outros fins, verdadeiramente úteis à condução dos assuntos públicos.

Ainda nesse sentido, as pesquisas de antecipação de voto, chamadas “pesquisas de opinião”, são usadas como elemento de convencimento nas peças publicitárias. O candidato com maior índice de intenção de voto se beneficia, ao apelar para o desejo inconsciente (ou, em alguns casos, consciente) que todo ser humano tem de estar do lado dos vencedores. Ou, ainda, pode haver uma espécie de delegação do próprio voto para a percepção da maioria – uma renúncia à responsabilidade de se empenhar, por si mesmo, na reflexão necessária para escolher bem. Outra questão que se coloca é a confiabilidade dos institutos de pesquisa, cujas atividades são difíceis de ser fiscalizadas – sujeitas, portanto, a se tornar peças no jogo de interesses das candidaturas endinheiradas. Portanto, pesquisas de opinião deveriam ser proibidas. Poderia ser alegado que tal proibição feriria a liberdade de expressão e informação. Porém, dado o teor de sugestionabilidade dessas pesquisas, o que seria direito à informação transforma-se em manipulação. Trata-se de uma informação que não é verdadeiramente relevante, mas, ao contrário, danosa.

Em conclusão, algumas das falhas do processo democrático brasileiro podem ser amenizadas pela separação entre interesses privados e públicos, e pela limitação dos recursos de marketing aplicados à apresentação das candidaturas.

terça-feira, 20 de novembro de 2012

Sócrates ou da medicina filosofal

Quantas pessoas conhecem a verdade neste mundo. Tantas. E a atacam com veneno e esbórnia.

Não há possibilidade de compreensão para quem conhece a verdade. Ao outro, desprovido e falaz, só resta a ignorância e o desdém dos sábios.

Não se incomode em destilar sua verve mordaz em minhas humildes crenças. Sei que você sabe.

Sei que te ouço. Sei que reflito. Sei que o seu desprezo não abate minha amizade e entendimento.

Não quero guerra, serei sempre um espelho para suas investidas. Elas não me atingem, penetrando seus olhos turvos que se debatem num ricochete. Um tremor intruso abalando crostas.

Quem sabe, um dia, numa dor ardilosa de sem saber, enxergará o seu tamanho e as suas chagas de que se esconde, intratadas e ressentidas.

quinta-feira, 15 de novembro de 2012

Contemplações #2

A vida
não é o oposto da morte.

O nascimento
é o lado inverso da morte.

A vida
não se opõe a nada.

A vida
são todos os lados.

A vida é o tudo,
é o todo,

e se o nada existe,
é que nada
é o nada.

sábado, 10 de novembro de 2012

Contemplações #1

O mundo é lar de muitas realidades.

Hoje, 7 bilhões de realidades. 7 bilhões de realidades individuais.

E, dentro das inúmeras dinâmicas relacionais, incontáveis realidades duais, grupais e coletivas.

Visões de mundo. Visões de mundo que se chocam.

Valores. Valores que se chocam.

Desejos. Desejos que se chocam.

Ímpetos de autoafirmação.

Ódio, inveja, incompreensão.

Ganância, indiferença, violência.

Generosidade, entendimento, desprendimento.

Sabedoria. Fortaleza. Amor.

Tantas palavras sangrando e fazendo sangrar.

Resta reunir, desviando do fogo cruzado, e fundar um banco de sangue? Da morte fazer vida, palavras de vida. Dar sangue às veias restauradas das palavras brandas e vigorosas. Palavras de consciência e discernimento.

O que cultivar na terra que é de todos.

E no ar. E no fogo. E na água.

A cada momento.

segunda-feira, 5 de novembro de 2012

o teste da felicidade é a ausência de motivos

na coragem
do enfrentamento
e paciência
do lento escorrer
de um vento escuro
resta escondida
em pesados escombros
a difícil alquimia
do sorriso renitente
e pontes aplainadas
fortaleza
de seiva e raiz

quarta-feira, 31 de outubro de 2012

meus olhos sem nitidez tateiam o mundo

no epicentro
dos desentendimentos

a perplexidade
como uma faca invade
minhas certezas

lentes justas
partidas no chão

ouvidos tontos
da dança escura
das versões

palavras como ventos
oscilam raízes
cujos cheiros
me confundem

relampeando ódios
sobre galhos
secos de fertilidade
folhas cinzas
e dores inflamáveis

restarão florestas
ao esgotar das desavenças
sobrará movimento
na seiva exausta
e nos caules implodidos

dúvidas ao cubo
entorpecendo o rumo
demandando frequências
sem receptor

piso firme
o asfalto encharcado
desviando poças
com as solas lisas
do abalado discernimento

o norte me espera
enquanto míope
com uma lanterna vagueio

primeiros socorros
no bolso de trás
o único
que não rasgou

sexta-feira, 26 de outubro de 2012

Seu sorriso lhe penetra como o último sopro

Não me surpreendem mais
os espetáculos vermelhos,
os gritos de vidro
como sussurros brutos
isentos de lacrimejar
e de arrepio,
sobre um palco com cheiro
de flor e de estrume.

Nada além de personagem,
separo lixo e papel,
improviso unguentos,
caminho feliz
com olhos lacerados.

Meu peito,
em serena agonia,
abraça e contrai,
mas não implode:
sou a alegria rebelde,
sou a vida na morte.

segunda-feira, 22 de outubro de 2012

um suspiro e uma bomba h se enroscam agitando as águas

construir pontes
em arquipélagos
demanda engenheiros
de extensos oceanos

tantos deles
se sucedem
a pelejar
o fracasso
de distâncias
ansiantes

alucinadamente
no mesmo lugar
do espaço corporal
dois espectros
se anulam destruindo
na fissura
dos átomos em choque

as estruturas caem
e a vida foge

até voltar

quarta-feira, 17 de outubro de 2012

Não tente derrubar alheias represas

Não abra
suas comportas
em coração algum.

Não afogue,
de ninguém,
alma ou corpo,
no envoltório impróprio
dos seus irrefletidos
arroubos.

Os seus rios,
com correntes incontidas,
ameaçam afundar-te
na mesma medida
de suas caudalosas
investidas.

Use,
ao contrário,
o movimento compassado
de suas águas livres
como energia precisa,
renovando seguro
a vitalidade hospitaleira
do seu justo lugar.

sexta-feira, 12 de outubro de 2012

a brisa resvala da torre movendo os cabelos docemente

não quero subir elevadores cinzas
de edifícios armados de câmeras
mas pintar suas paredes de azul-céu

atingir o relento dos andares mais altos
dançando um rito no ritmo dos astros
cujos brilhos cadentes não distingo

missivar nuvens com sopros
levando em sua química etérea
a água dos enfermeiros
chovendo nos campos da lida
a abrandar retinas cegas de estrondos

o peito contorcido em divisão
dizendo ‘longe’ e tão perto tão dentro

o que se passa nos olhos lacerados
do derradeiro registro de ser

não são capuzes tremulando de orgulho
mas o despido vento dos seus

domingo, 7 de outubro de 2012

oração para um dia em que votei

eu sopro ventos de paz
acarinhando os que têm paz

quebrando afiados
máscaras
de violentos parasitas

restando gosmas
adubo
penetrando machucados
de hereditários desprezos

brotando flores fugazes
débeis intentos de cor
logo fanando
como olhos inanes
da beleza
que se achega da pureza
do gesto da criança
que dá feliz
e se dá

eu sopro
ventos de paz

voando folhas mortas
bailando em rituais
que não enxergamos
a olho nu

quando chega
o frio desolado
é preciso arrancar
raízes combalidas

plantar ervas
com o auxílio de lareiras
compor unguentos
para futuras florações

ventos de paz

soprando
entre muitos ventos
ventando ao relento

no ar que circula
em todos os pulmões

quarta-feira, 3 de outubro de 2012

penetrando pupilas eu vejo o universo

todos
os seres
importam
nenhum
é especial

(as íris
compondo
infinitos
particulares
resvalam
valores
mas não tombam
a gravidade
dos corpos)

domingo, 30 de setembro de 2012

Arfando serena, ela investe e escapa

Eu te vejo, feita de ar.

Te respiro, enquanto transpiro, brasa macia a te roçar os resistentes contornos, meus pelos te crestam e sua diáfana pele se marca, em tatuagens invisíveis, nada que não suma se escolher invocar as impressões dos meus úmidos dedos, escalpelando as vigorosas pegadas da experiência, dos átomos de fluidos se chocando na agonia do salto e do mergulho.

Não demando o insano culto às folhas reintegradas à terra, sob os dedos do pé empinado, a erguer altares a ventos fenecidos, reverências retroativas moldando rostos compostos de imagens precárias arrojadas em telas etéreas e imprecisas, no interior de afetivas concatenações de brevidades há muito evanescidas, em presentes viços, a alimentar percalços coronários e sangue fatigado circulando.

Não escorregue, porém, a nutritividade dos fios novelados, para o ímpio fogo a soprar poeira esculpida, fina como a eletricidade das células cerebrais, desfazendo everestes, até a horizontalidade de uma calmaria funérea.

Olhos e ouvidos, e todos os sentidos, perplexos nos escombros da incerteza, rumam inermes para chuva e areia, engolfados no incessante câmbio de posições e consistências, jogo de clarão no breu, risco de respiro, invisível tinta sob a derme.

Eu te vejo, feita de tempo,
enquanto, leve, meu ser e falta movimento.

terça-feira, 25 de setembro de 2012

Não há muros que protejam festas ao ar livre

Palavras
em mesmerizante brisa
a exalar de carbono
monóxido,
ganhando aroma de nobreza,
suando
reses encilhadas
na ignorância arquitetada,
urdida nos porões a céu aberto
de arranhantes coberturas,
em que uísque e água
demarcam, em clareza dissimulada,
sua distinção, contraste sujo,
com a secura inane,
a fome sem norte,
e a miopia deslumbrada.

Faíscas aguardam
enquanto o oxigênio arregimenta
a precipitação
de lágrimas torrencias,
filhas da beleza
do nítido amanhecer.

Explosões molhadas
tornam bolsas em mochilas,
balbúrdias em diálogos
e ferimentos mútuos
no aprendizado difícil da ideia
e do convívio valorado.

Sob lânguidos uivos,
sedentos sulcam emaranhados
cortando vias improváveis,
no estertor da brasa,
pés queimados cicatrizando
na lida, quiçá malograda,
necessária
como veias desimpedidas.

quinta-feira, 20 de setembro de 2012

Entranhas expostas dão boas canetas

Não adianta chorar
as vísceras
de um destino torto,
esparramadas
pelo vidro translúcido
que se desfaz, rugoso
e paciente,
em umidade opaca.

Mais vale
limpar,
separando o sangue
para escrever,
com outra
caligrafia,
letras
organizadas
em renovada
disposição.

sábado, 15 de setembro de 2012

A lama espera o vento sem suspeitar

As ações de todas as chuvas
não enterram os crimes,
as pistas ocultas na derme,
subjacências oleosas
sujeitas a raios suspeitosos
de eletricidade
a carbonizar pelos e camadas.

Trôpegos humanos,
bêbados de iniquidade,
banhando o dorso e a face
na lama
restante de detritos
de cegas implosões de madeiras
duras e curtidas.

O asco
de sangue marrom
não evapora
sob o branco, carente
de substância real.

O fétido olhar
maculado de cores fanadas,
as mãos lisas
escorregando em pães e pentes,
solfejando intrigas
qual orfeus desalmados,
enxergando nas cabeças nuas
pedras por onde o rio
se atravessa.

À vil ilusão
da eternidade de todas as formações
materiais,
de um controle certo
de carnívoras plantas
e armadilhas insurretas,
os mosquitos zunem pompas,
declaram límpidas entranhas,
ferrões doces de algodão verde-rosa,
em sucções descansadas
que alimentam sem nutrir
e agradam na
inanição.

O tempo fecha de novo,
ventos arregimentam.

Não tarda o ciclone,
séculos são dias:
um furacão providencial
é o aprendizado de
uma vida.

segunda-feira, 10 de setembro de 2012

escorregando arranha-céus

números perdidos
em bolsas
(abstrações)
entre confusão
de chaves
rasgadas
e lenços
afiados

frenesi
de simbioses
hipertensas
com painéis
e matemáticas
escusas

nas ruas
derrapando tumultos
faixas
com letras de ordem
sufocadas
nos gases e nas lágrimas

exalando
(contra) choques
e hífens
vermelhos

fatigadamente
a ociosidade sangra
ingratos quadrados
em papel-jornal
evaporando
joelhos drenados

num círculo
resistente a desvios

mochilas
leves
de pesadas
crianças
refreando
no vazio
discretas
revoluções

homens
sem reflexo
calculando
(mercados)
futuros
suicídios

enquanto zigotos
incautos
esperam
a sua vez

novas tentativas
se seguem
até acertar
(quão distante)
o propósito
de todas
as ações

quarta-feira, 5 de setembro de 2012

não basta cortar as mãos com cacos de vitral

afogar-se
em gotas de orvalho
no sereno temerário
deglutir
gérmens trincados
de peças de brinquedo
despir-se
de esguelhas e tecidos
na chuva horizontal
talhar a garganta
de asfixias esculpidas
com soluços inflamados
expor os tímpanos
ao trinar dos peixes
das trevas abissais

ou impunemente
mirar o sol
no raiar do meio-dia

(nenhuma explosão
é capaz
de desmontar
a desabrochada
engrenagem
que passa
sem se explicar)

sexta-feira, 31 de agosto de 2012

sua nudez esconde uma outra

carregava
no velado
desnudamento

invisível
às amantes
a esvair
qualquer
físico
contorno

escancarado
aos próprios olhos
na ausência mesma
de reflexos

as cicatrizes
abertas
úmidas e tortuosas
em altos relevos
dos ricochetes
de seus ditos
transversos
e silêncios
de gumes
duplos

pisando
lembranças rasgadas
a sangrar mentiras

além da moral
o afligiam
as pernas mancas
do encobrimento

domingo, 26 de agosto de 2012

eles fenecem nos postes mas se adaptam como mosquitos

orienta-me
sábio dia
nesta esfinge
obscuro néon
de vermelhos
e liláses
cujo sentido
não distingo
através
do meu porre
existencial

confundem-me
vozes baratas
atordoado
por números
saltitantes
e cantilenas
astuciosas
permeadas
de sorrisos
a prometer
bem armados
de velhas
ressonâncias
com néons
de mesmerizante
coloração
ruas
noturnas
com despreocupados
movimentos
como a chamar
insones crianças
para brincar
em parques
ermos
livres
de atentados
ao pudor
de integridades
corpóreas

quero
embriagar-me
às quatro da manhã
e tropeçar
incólume
pela cidade
que me deita
com glicose
e café
extra-forte

o único fogo
do silêncio
nas camas
dentro
de portas
e voluntários
gemidos

orienta-nos
sábia manhã
e nossas janelas
inteiriças
e resolutas
no cerne
da dignidade
não precisarão
de repelentes

quarta-feira, 22 de agosto de 2012

o pianíssimo movimento das indagações

um ponto de interrogação
lançado ao espaço

(tão longe, tão perto)

em que a gravidade 
e a duração dos impulsos

(seres, esferas,
transitando em ar
ou em vazio)

executam
com bravos em surdina

(a plateia
deseja alcançar
impossíveis
distâncias)

uma matemática
e indecifrável
sinfonia

(números de vinte
casas se multiplicam
de cabeça em
cordas de muitas
oitavas)

não pode ser respondido
por mudos

(cegueiras tornam
nulos os sinais)

ou línguas abafadas
pelo ceticismo
dos ouvidos

sábado, 18 de agosto de 2012

pés não vivem sem distâncias

seus pés
desnudamente sujos
por solas gastas
ou limpos
fatigados dentro
de meias grossas

eu invejo

seus sapatos
com seu vai-e-vem
seus breves
sobressaltos
extremidades
encardidas
e quilometragem
do tempo aliada

o movimento
cortando deliberado
o lépido repouso

incansáveis e constantes
lamacentos e calejados

quero pés
que furem o chão
e trepidem a terra

terça-feira, 14 de agosto de 2012

ecos abortados retinem surdos

posto as mãos
em proximidade segura
sobre a rugosa camada
que de dentro
fura a sua pele
numa efusão
de não-ditos

o seu gemido
nitidamente contorcido
inambíguo
como ferro quente
nas ventas
sabe
a imagens borradas
em extravio

nem mesmo a morte
calaria os seus silêncios

segunda-feira, 6 de agosto de 2012

com uma lança ela fere a convicção resguardada

a Amanda

caminhando
abutres à espreita
em voos baixos
e curvas
exalando descaso

tropeçando em grãos
de areia chata
ou em rochedos
num desnorteamento
míope
e fatigado

a fome resta
ao fim de banquetes
lautos
insensível e lassa
surda a qualquer menção
de céu azul
ou picos nevados

as palavras líricas
da poesia amada
penetrando o entendimento
sucumbem
em descompassadas sangrias
a fortalezas guarnecidas
por lamentos
sexo oleoso
e frias carícias
como o embalar
de engrenagens
desgastadas

os olhos secos
ardendo
num fogo alheio
o prazer terrível
da dor segura
e nunca ameaçada

soprando ventos
em direção à terra
coberta
num feroz desenlace
pelas úmidas ondas
de um golpe preciso
clandestino
e gelado

extravasando nas pupilas
o conteúdo das veias
rompidas
no derrame das cordas
num morticínio
da letargia prostrada
no romper da entrega
ao estúpido estupro
da morte
desinteressada

revolvendo em tornados
o espírito do incêndio
o desaguamento impávido
em encostas devassadas

atirando
ao extremo das nuvens

o grito
incerto e despertado
estilhaçando as certezas
no jorro enfático
da voz rouca
revivida
conquistada

domingo, 29 de julho de 2012

a ordenação do aleatório imponderável

o destino está traçado.
não.
os dados estão jogados.
não.
os dados do destino traçam o jogo.
não.
o destino joga com o traçado dos dados.
não.

não tente me explicar o voo dos pombos.
não tente desenhar quadros sólidos no ar.

o céu não cai e os astros orbitam.

os amantes se olham e não sabem o que veem.
o mundo é feito de tentativas quase vãs.

ilusões se acumulam em insidiosas certezas.

na impossibilidade de conhecimento pleno
restam-nos escambos.

enlaces precários se multiplicam
enquanto gira a roda.

o uno e o diverso
se confundem e separam
sem revelar o segredo do movimento.

tanto som, tanto sentido,
e o espanto prevalece.

toda a inutilidade das buscas
padece na revolta dos seres
fenecendo milagrosa
nas mãos do jogador.

quarta-feira, 25 de julho de 2012

Oração à justa humildade

Encara a vaidade
e decanta a autoestima,
queimando o resto
em oferenda à proporção.

* * * * *

(leva, vento, leva,
leva a vaidade,
deixando o critério,
a dignidade e a visão)

terça-feira, 24 de julho de 2012

Incêndio

As chamas me tomaram,
nu em frente ao espelho
que estala afiado,
com seus estilhaços gélidos
penetrando meus olhos
flamejados.

Sangue branco,
de quem revolve
tripas vãs
num cacoete
desgastado.

Finíssimas veias,
crateras de íris,
buracos negros
e centrípetas cegueiras
renovando visões lassas
em imagens táteis
e certeiras.

A fumaça,
vapor de cores
desmanchando
e reunindo
formações
inesperadas
e sorrateiras.

As labaredas
consomem brumas
evaporando cinzas excessivas
em meio a sombras e clareiras,
adormecendo alertas
ao crepitar soslaio
de torpores diurnos,
sonhos esgarçados
e pesadelos fecundos.

sexta-feira, 20 de julho de 2012

indomável, ele escapa como areia seca

o poema
escorrega, como o horizonte
desabala do andarilho que,
não descansando de estrelas distantes,
nuvens negras
ou ofuscantes esferas incensadas,
se furta a armadilhas,
desnudando em plásticos limites
as sombras, as luzes,
a vida inteira,
sonora alegoria
nunca satisfeita,
compondo em linha incerta
sentidos inchados
e esquivas profundezas

segunda-feira, 16 de julho de 2012

a vida móvel dos teus traços

teu rosto

metáfora
do improvável

roçando
arisco
os recessos
fabulosos
da realidade

numa doce
incrustação
de pele
e movimento

desafiando
o tempo
se imortaliza
numa foto

reservando
na maciez
a aspereza
das dobras

teu rosto

metáfora
dos anos

por trás
dos olhos
é a mesma
e não é

em cada vinco
uma memória
em cada pinta
uma falta

no riso
genuíno
a decantação
da dor

a suada
alegria

o sabor
multiforme
da vida

quinta-feira, 12 de julho de 2012

dueto

teu coração, com sua batida alheia,
elusiva, escapando do meu em vão,
enlaçado na pulsante corrente
que o alcança, o encosta
e o imita, num toque uníssono
que ensurdece nosso ardor,
desdobrando em descompasso abrupto
e ritmo renascido
onde toca um, cala o outro,
depois alternando, num marulhar
de sangue fluindo, o contraponto
dos tambores suados, dos címbalos
exauridos, subvertendo o ar
em torno e apressando o alento,
apertando nossos peitos imantados
numa taquicardia extática
que escreve, no tecido das veias,
a partitura insana que transborda
vorazmente o corpo, se alojando
no recôndito da carne,
esculpindo cicatrizes espontâneas
de uma certeza breve,
desaguando no fastio
de um porvir sedento

segunda-feira, 9 de julho de 2012

crucial

a dádiva de um instante
na ardilosa armação da eternidade
transpirando a urgência
que exala a densa fumaça
defrontando sem clemência
a premente decisão

quinta-feira, 5 de julho de 2012

sem tempo para pertencer

me vejo sem data, sem época, ignorante do meu tempo, solto no vento, deitado na praia sob o sol, não sabendo o que vestem à minha volta, o que falam quando se amam, se se apaixonam, se cometem desatinos ou se limitam à embriaguez ordinária, me vejo na água violenta e nado, nado longe, nado e sumo na imensidão de sal e azul

terra me recebe, piso areia úmida à luz da lua, lateja em mim o pulsar dos seres, atravesso o ar palpável, respiro encontros, brinco gritos e solfejos, me armo de ouvidos, umedeço os olhos, constato a estrutura prosaica da minha própria anatomia, numa revelação quebro o relógio e me conformo à plasticidade esquiva das horas

sábado, 30 de junho de 2012

A despedida

Os anos passaram como flores que há muito perderam as pétalas, sem nunca fenecer. Vou até a lápide, devolver ao chão a haste carcomida e resiliente, testemunha serena do duro desgarramento. Se um vestígio de semente se esconder por suas estrias, alcançando sorrateiro o ventre da terra, em uma brevidade indefinida nascerá a planta viçosa e discreta da desilusão e da liberdade.

sexta-feira, 29 de junho de 2012

Orfeu no rastro de Chronos

Naquela noite eu te olhava e via em você uma mulher pela primeira vez. Parecia suspensa no colo instável da expectativa quando cheguei quebrando sua distração, cujo caráter me era incógnito e que eu me vi instado, pelo mais remoto fio de vida em mim, a decifrar com ardor imprevisto. Você me viu e eu não pude sentar ao seu lado, como se a lotação das cadeiras prenunciasse a separação inevitável que o tempo urdiria, como um manto escondido na escuridão. E, como aquele Orfeu que ouvimos distantes um do outro, olho para trás num pesadelo apático e te perco para sempre. Você aqui. Você lá. Você em lugar algum. Nem quando estava colada nos meus lábios, nos meus braços, no meu sexo, nem quando eu te fulminava os olhos com meu olhar lancinante, nem quando te arrepiava com o toque doce das minhas mãos deliberadas eu tinha você. Não sei quem você é, nunca saberei. Eu passaria a vida inteira tentando saber, e, desiludido de antemão quanto aos resultados da insana ousadia, me esmeraria em descobrir tudo (isso mesmo, tudo) o que te alegra, tudo o que te toca, o que te move, me desdobrando em alegrar, em tocar, em mover, como o patinador que minuciosamente aprende cada movimento da companheira, para atirá-la ao ar incerto e segurá-la na queda desarmada, num casamento arrojado de entrega e responsabilidade. Eu me dedicaria a saber o que você mesma não sabe, jogar luzes em tudo o que te assusta, para que você percebesse que não é tão assustador assim. Eu estaria ali, ao seu lado, e te ajudaria na delicada arquitetura da sua fugidia felicidade (sim, felicidade). Mas o tempo passou, e você está longe, além de qualquer conjectura, ou tão perto que não nos conseguimos enxergar. Se Eurídice foi engolida por Hades, sigo o rastro de Chronos, rumo a outros olhos, a outra ignorância, a outro desvendar, alterado irremediavelmente pela marca irrefreável da sua fabulosa existência, avançando sóbrio e atento pelo chão molhado de sal.

segunda-feira, 25 de junho de 2012

um canto corta num agudo o ar estéril

hoje um bem-te-vi veio me alertar

- ele só queria soltar sua melodia -

ainda há canto no concreto
há luz diurna sobre a noite cinza do asfalto
e movimento na impaciente orquestra de motores

há céu azul sobre a densidade do vermelho
e riso amigo na gravidez obscura

há luzes feitas de gestos fulminando ilusões coletivas
e um só sangue jorrando no fratricídio da espécie

há vida
como se varre as cinzas de um incêndio
como plantamos sementes sadias

- as últimas -

que resgatamos de frutas mortas

quinta-feira, 21 de junho de 2012

a romper os ardis do medo vão

me vejo às voltas
comigo mesmo

(habito uma prisão sem grades
sem correntes a ofuscar
a mobilidade
das articulações)

da fonte sem lugar
que pulsa sem cansaço

em mim

renovo os votos
da fidelidade mais crucial

(o amor não é mais que a vida
a vida é movimento

e sempre pede

doce ou austera
reservada ou sonora)

penso no que sinto
sinto o que penso

nas bordas da compreensão

e decido

(na velocidade da luz
que de dentro de mim
se solta
e de fora de mim
me penetra

ubíqua
e imperiosa)

tenho enfim chaves intangíveis
o segredo das ilusões
a pólvora do alerta

mancando ainda
atravesso o invisível

domingo, 17 de junho de 2012

quinta-feira, 14 de junho de 2012

varredura

um amontoado de palavras doces
não restaura o cristal partido
nem deixa cacos soltos pelo vento
ou perdidos onde não chega luz

sábado, 9 de junho de 2012

As melodias não se rendem, laceradas ainda

Em uma noite prensada no intervalo de dois dias tensos, Lívia rezava sem convicção. A face de seu pai lhe aparecia como uma pintura, cravada no recesso das suas aspirações. O lago tremulante, refletindo as luzes do morro, lhe sugeria, através da janela e da escuridão, a flutuação inebriante no tom com que a chamava, ora apreensivo, tantas vezes vestido em camada áspera de desnorteamento, ora apático, perdido nas profundezas da sua alma, extraviada do próprio entendimento. A solidez da presença nua e pesada de seus últimos dias se tornava em cinzas diante do inexorável, o compasso surdo e seco do tempo assíduo. Água e sal desciam aos seus lábios, relembrando, à sua sensibilidade dormente, a perseverança rebelde do gosto sobre a insipidez indiferente das horas.

terça-feira, 5 de junho de 2012

da terra mais frágil vem o viço das flores

eu serei
para você
o cinzel

perfurando
esmerado
e preciso

a crosta
diamantina
e tenaz

em torno
da vulnerabilidade
mais desejosa

na qual plantarei
com dedos inermes

a um só tempo

a cor
a brandura
e o espinho

que se move

presto
e seguro

ao sabor
das investidas

domingo, 3 de junho de 2012

na vida microscópica do ar

estou aí
como meu pulmão
está no vento
que acaricia
os meus poros
e chega
suavemente
às suas unidas
respirações

terça-feira, 29 de maio de 2012

O demiurgo

Garimpando palavras dentro de mim,
não encontro mais que sílabas esparsas,
letras aleatórias que me confundem
num rastro ralo e sem fim.

Defronto a tarefa de quem junta,
criando sentido a partir
de notas puras,
articulando incerto
a exatidão que a história
da língua oferece, como
dádiva que pulsa.

O dia escorre
e a lua redonda desponta
no leste,
mas o papel ainda queda
em pungente desordem.

Rodopio o dedo alçado
na conjuração de todas as potências,
emergindo a fauna selvagem
das palavras nuas e gritadas,
estabelecendo, numa domesticação
precária, o ávido concatenar
do tentativo pensamento.

(Não há subterfúgios
a catar pedrinhas
debaixo do cinza
de um meio-dia abafado
ou de um gelo que afiado
corta a assonância do sol)

Espinhosos e crus,
os sinais deslizam truncados
pela uterina brancura,
regalando as horas
com a latência de um descaso,
uma coceira, uma interrogação,
um espanto ou um estalo.

quinta-feira, 24 de maio de 2012

se cortarmos com uma faca a distância entre nossos olhos

eu vejo
na interseção
do seu olhar
com o meu

o ditoso
e perigoso
desconhecido

a beleza
aterradora
do desfiladeiro
em cada ponto
de contato

a poeira
rebelde
que dança
sossegada
e despercebida

o salto
sem razão
teimosamente
reiterado

o encontro
sempre
provisório
escorregadio
e precário

a comunicação
por fonemas
que se desmancham
no vento
antes mesmo
de se compor
em palavras

a certeza
de querer
uma
e outra vez
decifrar
as lufadas
as brisas
os sopros

tirar
sangue
e carne
do espaço
vazio

domingo, 20 de maio de 2012

O crucifixo na água

Acenando com a íntima mortalha,
despedindo a tenra esperança,
abrindo alas ao crucifixo
disforme de todos os erros,
reverenciados como instigadores
de aprendizes aplicados,
marchamos hirtos por águas
ferozes penetrando os poros,
modelando tendões, amaciando
articulações numa natação
engatinhada que amansa
o peso do passado, assinalado
no contorno de um desenho
escuro e vago, através do qual
a pele se vê instada
a reaprender a respirar,
irrompendo veemente
em maleável envoltório.

quarta-feira, 16 de maio de 2012

A fluida matéria dos seus lábios

O seu sorriso
é uma ávida ampulheta,
um fulgor fugidio
roçando, remoto e tênue,
os meus plácidos olhos.

Numa tácita conformidade,
eles se integram na viscosidade
plástica de sua impermanência
e na plenitude do fluxo
que expira todas as coisas,
inspirando sempre, num
rebelde movimento, novas
e distintas formações.

Envolvido pelo cálido fragor
do sol em seu rosto cravado,
me transfiguro em poeira
numa explosão enfática,
e alço voo reproduzindo
jubiloso o paciente escorrer
do fugaz imorredouro.

sexta-feira, 11 de maio de 2012

no espaço de três respirações

me atirarei no abismo

lá onde medos se enfrentam desastrosos,
comendo chão, bebendo suor e um amargo
e quente vermelho, que gruda na glote
arranhando a garganta engasgada e rouca
no soar dos resilientes trinados

imantações telúricas espreitando em redor
de todas as percepções, penetrando os ossos
sem avisar das consequências custosas
da sustentação do sofrimento em todo
o seu peso, alastrado pelo norte
e daí a todas as direções cardeais

medos que não se sabem medos,
desconhecendo a cravação dos punhais
em suas próprias peles no lacerar
das alheias, entranhas saindo viscosas
sem que as vejam sob a bandana
da empáfia e da ilusão de existências
segregadas, desolação inconsciente
do reprimir da centelha no mais fundo

o disparate aparente, a olhos
desavisados, do mergulhar deliberado
na doença e na morte, vibra aqui dentro
no trampolim para as águas escuras
de escarlate manchadas, reino
de caducas e encarecidas máscaras
idolatradas por miseráveis que se fiam
abastados, mas que cegos e certeiros
preparam ruínas inevitáveis e cabais

absorvo e encaro minha hesitação,
e numa pausa decisiva dobro os joelhos,
dentro de mim o fogo solar,
nas mãos abertas a consciência da dor,
na boca a leveza, nos pés a presteza
e no olhar a certeza do amansar
difícil, vagaroso e tenaz
dos corpos convulsionados sobre
alegrias dilaceradas que,
num salto duvidoso, me proponho
a catar, acolher e juntar

imergindo num resoluto propósito

segunda-feira, 7 de maio de 2012

aferição

guardei as utopias
no escuro da noite

iluminando com discrição
o desolado concreto
os edifícios caducos
da lida diurna

banho de sóis distantes

dando conta
na úmida pupila
da amplitude
do limite
e da fissura

quinta-feira, 3 de maio de 2012

a composição do vidro

o mundo escoa à deriva
por meus dedos perdulários

eu os fecho num relance
e um caldo de ouro e sangue
espirra em meu rosto

caudaloso

me queima num assalto
cálido, gélido e ácido
esculpindo a derme
num horrendo traço

as fissuras carrego
nas sobrancelhas
e nos olhos que fulminam
o caleidoscópio cinzento
das criaturas fraturadas
irmanadas na saudade
dos tempos míticos
de uma paz conjecturada

por meus dedos
se esvai um mundo
cindido, rajado
de anseios frustrados
e amanheceres rosados
no expectante silêncio
de uma lágrima abafada

macerado, caminho
num rincão desprezado
onde uma brisa solerte
me lambe os lábios
modelando um riso gratuito
um arrepio imprevisto
um perfume cintilado

num rodopio
o mundo me atravessa
e arisco me ultrapassa

levo agora
lentes velhas
em minhas mãos
para sempre
calejadas

domingo, 29 de abril de 2012

imagens desse quilate sangram em meus ouvidos

eu indagava

o que é que me movia
o que é que incandescia
o que é que me inflamava

convulsionava
o avesso
da moção

(eu era inerte
e perdurava como morto

água gelada
despejada
em minha nuca)

as atrocidades
além das cortinas
dos nossos lares

(e ao pé
dos abajures)

o pulsar de um grito
relampejante na escuridão
de uma manhã de sol
rachando o asfalto

o breu explodia
para num sopro turvo
encobrir a luz

a ranhura insistia em pilhar
meus ouvidos
enquanto tantos se faziam
surdos
afeitos à balbúrdia
e ao engalfinhar
de tantas feridas

(cegas
medonhas
sem saber
de si)

desprovido de pálpebras
eu enxergava ainda
num lacrimejar
incessante

relatando
infâmia
e piedade

tropeçando em rotos
e mutilados
em espelhos quebrados

ladeando o humano
indevassável

(eu morreria como fosse

diluviano na seca
consumido em estalos

inscrevendo
em meu epitáfio
partitura de alerta

caligrafada com o sangue lasso
dos meus tímpanos graves)

quarta-feira, 25 de abril de 2012

As feridas querem olhos que as penetrem docemente

Eu cheguei em você
e te vi,
despida não em corpo,
mas no desenho dos astros,
no céu do seu sol nascido
aquela hora.

Era daqui que te via,
e como poderia ser de outro lugar,
uma pergunta de resposta clara,
mas que de tão importante
se faz preciso realçar.

O que vi, de imediato,
foi sua busca por si mesma,
uma ânsia de descoberta
até então impressentida,
mas que agora, em combustão
interna, te queimava sem clemência,
convencendo, impassível, qualquer
incerteza, com persuasão que só você
poderia portar, penetrando
habilmente todas as células,
tornando quase instantânea
a resolução de se arriscar
na temerosa jornada.

Você foi, numa súbita injeção,
inundada por uma compaixão inquieta
que te apresentava feridos
onde esperava oponentes,
até se dar conta
de que se deparava consigo,
suas próprias armas voltadas, tétricas
e solenes como medievais espadas,
contra a pele tenra das suas vulnerabilidades
mais recônditas e preclaras.

Tomada por ímpetos revolucionários,
investiu na palavra como a força criativa
dos recursos regeneradores,
num combate árduo que te misturava
em amante, em fera, em sábia, em ouvinte
de uma voz imprevista que te seduzia,
amealhando os tangíveis valores
da alegria cálida, abertamente celebrada.

Num clarão imponente,
esgotando as forças
dos meus olhos exíguos,
contemplei em você o amor,
derrubando irredutível os muros
das feridas zelosamente guardadas,
e, a salvo do traço incisivo
de todos os olhares,
se revelava a aventura,
com pontes invisíveis
sobre terríveis abismos,
vida, loucura e morte espreitando
nas cavidades suscetíveis do êxtase
mais visceral, dilemas hercúleos
de ardentes figuras que,
sob o toque úmido e frio
da confiança e da razão restauradas,
apresentavam as mãos fechadas que,
aguardando com paciência escassa,
sujeitavam-se ao seu aceno,
prontas para abrir.

Cego e sereno,
não pude inteirar-me
de sua escolha,
mas parti levando a felicidade
de deixar-te entregue a si,
como sempre firme, como sempre bela,
agora prenhe e fortalecida,
na lucidez de quem conhece, cuida
e dá o valor devido
às cicatrizes e feridas.

sexta-feira, 20 de abril de 2012

para lembrar sua alma esquecidiça

eu queria
fazer acupuntura
no seu coração

cuidando
da mais ínfima
arritmia

enxergar
na sua íris
cada cristal

corrigir
em sua retina
a inclinação
que te faz
ver sombra

onde há luz
e sombra

limpar
seu espelho
com o lustre
dos meus olhos

ser concisamente
um gentil choque
em sua alma
entorpecida

um mensageiro
que te entregue
a você mesma
na exata proporção

domingo, 15 de abril de 2012

Elogio do tempo abandonado

Os meus anos
foram como degraus
que você,
com sua gana e teimosia,
quis galgar.

Eu era tão alto
que você suspirava
entre vertigens,
rodopiava o rosto,
deixava cair a cabeça
na nuca, expondo
a brancura lívida
do pescoço,
ofertando,
num gesto generoso
e arriscado,
a pele, o pelo, o colo,
o poro.

Meu toque molhado
e o correr vagaroso
dos meus dedos,
no limite da insensibilidade,
te eriçavam, entregue,
subtraindo-te a noção
do tempo e do espaço
na velocidade de um felino,
e você se molhava
ainda mais,
convidando sem dar por si
a zelosa ocupação
de todas as suas cavidades,
tremulando afoita
numa espera abandonada
que eu de pronto atendia.

O depois você não ousou mencionar,
nem eu quis aludir,
para não vir a trair, involuntário,
a fragilidade quebradiça
de qualquer temerário
aceno ou afirmação.

Você aceitou, num tácito compromisso,
meu convite de silêncio reverente
ao porvir incerto,
do calar dos olhares que,
tresloucadamente circunspectos,
se atiram além dos horizontes.

A sua umidade é o seu convite,
reiterado na tessitura das impressões,
e eu o aceito, macio e doce,
em cada nervo, em cada acento,
e em cada recanto em mim
que te grita num sussurro:
agora.

terça-feira, 10 de abril de 2012

a pele é um pano cheio de manchas

num sabor
ácido
a esvair
incrustações
nos desmembramos
estourando
copos
entornando
cenas
usando
lápis-borracha
para apagar
sangue
vinho
e digitais

quinta-feira, 5 de abril de 2012

Intervalo

Escalar
o precipício.

Retornar
por retas curvas
ao indolente
ardor
de madrugadas
turvas.

Ouvir
o doce pulsar
das mentiras brancas
e esvair
o trêmulo soar
das horas infindas.

Abrir a garganta
ao céu
e engasgar-se
com a luminosidade
dos ventos.

Sentar-se
num intervalo
e sentir o tempo
roçar
eriçando os pelos
num desabrochar
de permanência
esquiva.

sábado, 31 de março de 2012

Nossa compreensão não a pôde alcançar

Ela sorria e cantava feito criança,
saltando sobre abismos como quem dança,
desmanchando carrancas por onde passava,
flutuando em luz como nuvem preclara.

Mas de tristezas funestas ela padecia,
de onde vinham, repentinas, ninguém sabia,
como chegavam se iam, sem ser questionadas,
mágoas furtivas deixando invisíveis pegadas.

Pendendo eternamente num fio sem terra,
travando consigo uma perpétua guerra,
admirava, encantada, as aves de rapina,
seus voos resgatavam, nela, uma menina.

As brincadeiras redundavam todas tristes,
não surtiam mais efeito os velhos chistes,
sentia rasgar-lhe o duro e ríspido chão,
ferindo-lhe a vista o cinza baço do verão.

Atravessava todos os dias uma bela ponte,
indo ao trabalho, lhe deslumbrava o horizonte,
metros abaixo contemplava o rio imenso,
como se para mergulho ele fosse propenso.

Numa madrugada por nós nunca esquecida,
despiu-se de roupas e de sonhos, destemida,
lançando-se às águas escuras, convicta e serena,
assinando o próprio funeral, sozinha, nua e plena.

terça-feira, 27 de março de 2012

vossa excelência é um canalha

como deve ser bom
dizer a verdade

abrir a boca
sem pensar
nos ouvidos
que podem estar escondidos

em canetas
nos cantos da sala
atrás dos óculos escuros
por dentro das saias

eu bem queria
olhar para as câmeras
embocar os microfones
contar tudo
o que ando fazendo

dar um bom-dia sincero
aos nobres salafrários
que sentam ao meu lado
nas raras vezes
em que vou ao trabalho

há noites em que sonho
que sou preso
com outros metralhas
jogado em cela especial
com direito a tribunal
a circo nacional
e a delação premiada

sinto até um alívio
e acordo com nostalgia

anteontem
me flagrei desatento
tremi e gelei
mas depois relaxei

eu dizia a verdade
mas era só em pensamento

quinta-feira, 22 de março de 2012

Os olhos do menino

Não pingue colírio
nos olhos do menino,
mas deixe-o ver,
em ardência encarnada,
o mundo em sua fúria,
obscura e escancarada.

Reze ao deus
que alguns matam
e outros ressuscitam,
ou se cale,
ou apenas maldiga.

Talvez ele fique cego,
ou tenha catarata,
mas mesmo que
não mais enxergue,
dará testemunho exato
dos gritos vermelhos,
dos precipícios negros,
dos cochichos claros.

Carregará nos ouvidos
as cantigas azuis,
e nos lábios calosos,
a dura responsabilidade
da elaboração precária
de uma letra sem melodia,
crua, dolorosa e sábia.

Não pingue colírio
nos olhos do menino,
mas mostre
o silêncio da aurora,
as ondas
do mar encrespado,
a espuma
batendo na areia.

Leve-o,
bem agasalhado,
à montanha
do observatório,
e lhe ensine
o vasto universo,
perene e ilimitado.

Sente-o
perto da fogueira,
e deixe o calor,
como a um filho,
abraçá-lo.

Encene o concerto
do drama humano,
heróis lutando
contra tiranos,
e dos livros do tempo
vire-lhe as páginas.

Dê a ele
a beleza do mundo,
e seu colírio
serão as suas lágrimas.

sábado, 17 de março de 2012

Desprovimento

Indistinto, aprisionado no formato de sua própria concepção, espreguiça os braços, apalpando com as costas da mão os tijolos de sua cela autogerada.

Seu corpo cresce ferozmente e põe abaixo o invólucro que limitava seus movimentos. Ignorante de tempo e lugar, desconhecido de si mesmo e de todas as possibilidades que carrega o arbítrio inerente, assusta-se com um globo terrestre de delimitações marcadas na mesa da sala de estudos.

Num ensaio de retorno à condição diferenciada, voltam-lhe à mente as fotografias em preto e branco que repousavam na escrivaninha do tio-avô. Pouco a pouco suas lembranças se colorem e se expandem num vórtice de imagens nítidas e desconexas. A delicadeza do filme não resiste aos raios de sol refletidos pelo vidro do relógio, e décadas se consomem num incêndio sem propósito.

Ou seria este o esquecer, debruando as paredes da memória com fitas brancas, pintando as pedras brutas com a alvura das origens, condensando em um único pensamento o desenrolar de todos os novelos e de todas as tramas, compondo num só tom e numa só frase todos os andamentos?

Deparada a interrogação, aponta para cada coisa auferindo-lhe o nome, que parece sempre limpo, tenro e luminoso na recente descoberta, e assim reúne ditoso o vocabulário de tudo o que existe abaixo do céu azul.

Mas seu espanto maior se reserva para os olhos do homem que porta a essência de todos os perfumes, trazendo a chave mestra que lhe permite trafegar despercebido pelo labirinto dos corpos, impunemente tocando os espíritos com sua flauta arrebatada. Ele mira aqueles olhos cândidos e enrugados apenas por um instante, numa visão fugaz que se desmancha em travessões e reticências exclamadas.

Subitamente, no íntimo da própria vacuidade, abarca a plenitude do efêmero incessante, esperando de pé sob a chuva que fustiga docemente os seus cabelos. Tudo o que possui neste momento ímpar são potências, palavras e mãos vazias ao relento, consagradas agora ao improviso em um palco sem cortinas, sem holofotes e sem direção.

segunda-feira, 12 de março de 2012

Planta

A arquiteta revolve planos
rabiscando informes desenhos
a partir do esboço dos seus sonhos.

Inquieta ao saboreio de tangentes,
reza a um deus em que não crê,
tateando certezas num braille tosco
que não consegue compreender.

Enfurnada nos cobertores de junho,
vê pela janela um sem-teto febril.

Lembra-se num estalo de uma sopa
tão quente quanto chama de fogueira
que a antiga sogra preparava
e distribuía em ruas quase ermas.

Subitamente visualiza os findos traços
e as planilhas na sua mesa,
rasga papel como combustível
do fogo de uma panela inteira.

Recolhe água, bate feijão, corta legumes
em pedaços que bem justos caibam
na concavidade da colher segura.

Desce as escadas, agasalhada,
ligeiramente tresloucada,
compartilhando com um estranho arisco
um pouco de frio e um jantar,
modesto, silencioso e ao fim gentil.

Adentra a papelaria vinte e quatro horas
e se mune de novos instrumentos,
recompondo em corpo vivo e alma insone
a pujança dos seus sonhos primitivos.

quinta-feira, 8 de março de 2012

Vou-me embora pro Chifre da África

Meu filho fez anos ontem. Ele me contou o seu pedido ao apagar as pequenas chamas, embora eu alegasse que não deveria. “Eu desejei que você volte feliz”.

Eu havia dito que só voltaria feliz se deixasse todas as crianças bem nutridas. Não era para ele ter ouvido, ele que é da idade da inocência, de um lugar e circunstância que a preservam, ele que precisou me perguntar o que é bem nutrido e se espantou que alguém pudesse não ser.

Depois de me revelar seu desejo, me deu um sorriso, que guardei como a peça mais preciosa da minha bagagem.

segunda-feira, 5 de março de 2012

Asas do poeta

a Curt Bois

Vulcanizadas emoções.
Sente pra mim?
Preguiça de lavas, de ebulições.

Frieza de letras, espaços e sinais.
O que acontece, quando gelo e magma se encontram?

Caretas ela faz raivosa ao espelho, falsetes ressonados pelo vidro insolente, arquitetura de olhares revolvidos na ilusão.

Inumeráveis urdiduras, costurando crimes e recortes de jornal, pé ante pé, na rua, em movimentos hábeis e nervosos, exemplar de violência urbana a qualquer momento eclodindo.

Enquanto bombas explodem no Oriente Médio, mulher lixa as unhas descansando o esmalte no braço da poltrona, com a televisão a prometer beleza, liberdade e o impossível.

Um casal de desconhecidos geme através das paredes, a cama improvisada range, orquestrando vorazmente os fluidos liberados, que se desdobram mais tarde em vitupérios recíprocos.

Soldados queimam livros, estúpidos, ardendo identidades, atirando álcool em fornalhas de redomas inflamáveis. Os fiéis se juntam ao coro dos incendiários, agora confundidos, unidos na ignorância e nas razões sequestradas.

Na península itálica, ecos ancestrais pregam a fraternidade entre os povos, reivindicando o monopólio da sexualidade, em meio a nódoas odiosas e clamores dissonantes. Nos subúrbios brasileiros, pastores carregam máquinas de leitura para cartões de crédito desgarrados.

Navios clandestinos mancham de vermelho os oceanos, plataformas expelem viscosidades negras na imensidão, envolvendo a vida que perece sem defesa, pagando tributo à ambição demente.

Acampados, defrontando monumentos erigidos à cobiça, bradando na praça a sacudir a estrutura vil, coberta da ferrugem da tirania, revestindo-se com o emblema do inconformismo deliberado, gritam os incompreendidos a sede recôndita e inesquecida.

Não eram as horas do repouso, infravermelhas em sua fatigada inexistência, eram horas de tensão, amores ultravioletas, exigentes e difíceis, sobrecargas em nossos débeis corações. As horas, descoloridas e caóticas, dançam seus ventos aleatórios, ar, frio, calor e umidade, valsa de dores, palavras e desentendimentos.

O poeta canta. É um velho subindo escadas de bilblioteca, procurando no muro o café em que todos eram gentis. Sua voz é pausada e entoa, cristalina, cada sílaba áspera, cada fonema luminoso. Não lhe preocupam as rugas, não lhe atormenta o tempo atroz, ele é leveza e ternura a recitar a epopeia de um mundo sem paz.

Quero ser, em seu reconhecimento, pisando com a sola todos os chãos, incorporando a esperança triste de seus passos, num salto aloprado e improvável, o alegre desbravador, o guardião do assombro primordial, o primeiro poeta vivo a narrar a paz.
 

 


quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012

Fiel

Foi melhor assim, pensou Marisa enquanto abria o maço dos cigarros que Joalvo não suportava. Arrancou o papel cinza que os envolvia e, por força do hábito, aspirou profundamente o cheiro inebriante do tabaco. Era tudo o que se permitia fazer desde que fundira ao dele o seu endereço. Retirou um cigarro, colocando-o, com movimentos lentos, na boca entreaberta, e, com o isqueiro antigo, que ganhara de outro homem, num passado tão remoto que ela não conseguia ligar ao presente, acendeu a ponta, sugando calculada, mas vigorosamente, a fumaça através do filtro branco.

Viu os olhos dele. Olhos vivos e desolados, ao contato das suas palavras de despedida, do seu perfume agridoce, da sua face incólume. Não parecia haver restado traço algum do brilho úmido que tantas vezes havia gerado neles. Olhos secos. Agudos. Impotentes diante da resolução inabalável, consequência furtiva da ação de uma criatura dissolvente e imaterial que, sob relances míopes e tímidos, nascera às escondidas e ganhara aos poucos dimensões consideráveis, conduzida pelo balanço das vontades, tomando o leme de assalto e, num sopro mais forte que ameaçava revolver as águas, sussurrava aos seus ouvidos que era hora de aportar.

Uma lágrima escorreu solitária e se encontrou, na língua, com o cigarro, levando-a à ideia de uma inalação do fluido que é o símbolo e o resultado de uma emoção intensa e carregada de sentido. Quis a descida de mais uma, mas a serenidade já a dominava. Sem abandonar a beleza dos olhos de Joalvo, deu a última tragada.

Nunca mais o veria. Mas prometeu-se, como fidelidade ao enlevo sublime que a elevara sem enganos à face mais calma do deleite, que a arrebatara por todos aqueles anos, tão sutil e tão definido, tão inteiro e tão gratuito, a um só tempo contido e transbordante, jamais esquecer os seus olhos.

sexta-feira, 24 de fevereiro de 2012

O domador das águas

Este imperioso desejo,
que déspota carrega
o poder destrutivo
de um tsunami odioso,
arrancando raízes,
fanando pétalas tornadas
dissolvidas, maculadas,
renegando sem piedade
o júbilo de momentos
indeléveis e precisos,
eu me declaro
sobre ele soberano,
atento ao sinal
de qualquer submarino
terremoto, soando
alarme amigo,
retirando da costa
tudo o que é vivo
em mim, rumo às
montanhas do fogo
que, em combustão
deliberada, com leveza
desintegra
todo traço de tirania
e descontrole,
de capitulação absoluta
frente às águas caudalosas
da dileção tresloucada.

domingo, 19 de fevereiro de 2012

Alguém me ouve a menos de sete palmos?

Não sei se estou
falando para os túmulos

se me ouvem
unhas e cabelos
que seguem crescendo
lado a lado
com os vermes
em corpos nauseabundos

Talvez minhas palavras
estejam há muito
decaídas

empoeirando as casas
mal assombradas
pelos espíritos doídos
das desventuras
de outras vidas

Soando barítonas
e cadavéricas

sob aplausos
e estalos inaudíveis
pedaços de ossos espalhados
entre mãos dadas
e velas retorcidas

Outra voz porém
não tenho

se todo sentido
finda obsoleto
serei um lembrete
em forma de fantasma

de quando se precisava
de alertas
e do passar do tempo

Se uma alma viva
meus discursos tocam

festejemos anacrônicos
em meio a cores novas
quem sabe nosso coro
como suave contraponto
pelo vento carregado
atinja uma dimensão precisa
que o presente renegava

terça-feira, 14 de fevereiro de 2012

A travessia dos olhos opacos

Não somos vassalos do ontem, nem do amanhã. Não somos vassalos de tempo algum. O tempo em que brisas eram furacões. O tempo do fogo e das encostas devastadas. Éramos simples e não sabíamos nadar, circundávamos os rios correndo hábeis por suas curvas resolutas. O sol nascia do mesmo jeito, eu bem me lembro. As nuvens se desfaziam e retornavam sempre novas. Não conhecíamos tela e tinta – as estrelas eram nossos quadros, a noite nossa parede. Contemplávamos o amanhecer dourado e cabelos molhados dançando na tempestade. Hoje não nos olhamos uns aos outros. Só enxergamos a nós mesmos na superfície cristalina e lustrosa dos olhos alheios. Podemos dizer que vimos algo além da nossa própria imagem? Os seres que conhecem suas cicatrizes, que as amam intrépidos, enxergam melhor. Não tropeçam possuídos em seus pedaços espalhados pelo chão que pisam, nem os farejam vorazmente pelas curvas dos corpos que exploram com os sentidos, escondendo de si mesmos as fendas doloridas de suas peles porosas. Veem cores. Estes são verdes, aqueles azuis, os outros castanhos. Opacos, convexos. Querem enxergar para além das pupilas. O tempo dos oceanos polares. Das grandes migrações. Podíamos nos olhar por dias, mas os assuntos eram escassos. Agora podemos nos falar por semanas, e não dizer nada. O tempo dos clarões e telepatias. Das profecias consumadas. Podem nossas gargantas resgatar nossas verdades, nossos ouvidos compreender propósitos singulares, nossos olhos romper nossos reflexos, penetrar espíritos enclausurados? Não somos vassalos do ontem, nem do amanhã. Não somos vassalos de tempo algum. Falemos então, e ouçamos. Olhos nos olhos.

quinta-feira, 9 de fevereiro de 2012

A febre

Seus olhos vãos
não me querem mais;

não seriam vãos
se me quisessem ainda.

Não me servem de nada
agora, sob os pingos vigorosos
que mancham minhas lentes
de contato descoloridas.

Você foi como um corpo
estranho em meu sangue,

a dose derradeira
do puro malte escocês
depois de um porre
de aguardente vadia.

O álcool nunca pôde
com nossa sensatez obstinada,
furando cerdas em tecidos
esgarçados,
encouraçados pavios em flamas
derretendo cera quente
em umbigos desgarrados.

Agora espero meu corpo
renunciar ao ardor,
anticorporar
tudo o que de você
me resta ainda,

e seus olhos vãos,
como é vão o centro do oceano,
para sempre inacessíveis,
flutuarão à deriva,
além dos horizontes.

sábado, 4 de fevereiro de 2012

Coragem

É montar

um elefante

embriagado

numa ponte

de madeira

pra ver

o mar

pelo menos

uma vez.

É roçar

vestígios

do papel

que desintegra

sossegado

na fogueira

querendo

tornar

cinzas

em solidez.

É pular

amarelinha

em números

de brasa

e viver

abrindo

os olhos

sem os fechar

ao espelho

mirando

a própria

nudez.

É contemplar-se

nas águas

e saber

que você

como sua imagem

se move

ao sabor

do tempo

e que seus olhos

brilham

desvelando

quando tudo

o que queria

era esconder.

segunda-feira, 30 de janeiro de 2012

quinta-feira, 26 de janeiro de 2012

Lubricidade

Ele não queria um espetáculo. Não lhe eram agradáveis os infames liames do incesto, ele que não tinha família, sequer vestígios, mas aquela mulher era seu sopro, seu ar, seu vento, o que restaria após uma noite rasgada na carne da ânsia, labareda de tora escassa.

Era bem de seu feitio evaporar-se abandonando cinzas, como um vitral descolorido numa janela de maçonaria. A abundância de aliciantes melodias, untadas com quimeras sorrateiras, dava-lhe a qualidade das ninfas revestidas de purpurina roxa e adesiva.

Ele, como folha de papel vermelho vivo, proporcionava à sua cola de brilhos uma superfície plana, logo porosa e sulcada por ranhuras ásperas em que suspiros sangravam.

Afinal, chegou ao intento de estourar por si mesmo aquelas bolhas de sabão que insistiam na manutenção de sua integridade iludida, antes que sua explosão espontânea configurasse uma hecatombe para sentidos semialertas.

Não lhe importavam as ruas escorregadias agora. Na companhia do nada, sentia o resiliente pulsar de seu coração, físico, material, inteiriço, composto organizado de química e eletricidade, e toda a vasta fisiologia que lhe permitia andar sob a noite que suas córneas registravam.

Subindo ladeiras, encontrava a si mesmo no espelho do asfalto molhado. Exposto ao céu nublado caindo como conta-gotas, seus cabelos se ondulando nas fissuras de seu rosto, era um prazer recriado a inalação do sereno em seus pulmões, e nada lhe faltava mais no manso cavalgar da madrugada.

sábado, 21 de janeiro de 2012

O trovão

Não quero mais tobogãs ou mergulhos na pedra.

Colocarei meu rosto debaixo das águas
que despencam ladeando a rocha,
imperiosas sob o cetro da gravidade.

Avistarei iridescentes vapores protegendo as pupilas
de um brilho que se me afigura excessivo,
guardarei nelas todas as cores do espectro –
não as abandonarei, não andarei cinco metros
sem o translúcido anteparo de suas curvas.

Imergirei nos pontos mais profundos,
testando intrépido o poder de meus membros,
sustentando, ávido por distâncias,
a respiração interrompida pela ausência de brânquias
concebida de antemão.

Descerei, molhado, escadarias de degraus altos e longos,
com os pés descalços sobre o chão pedregoso.

Deitarei na grama sob o sol que se esconde, considerando
finalmente abrir, à força se necessário,
um buraco na terra, introduzindo ali
os estrondosos relâmpagos da tempestade fecunda.

segunda-feira, 16 de janeiro de 2012

À beira da estrada, com a geladeira no colo

A ponte ruiu
a chuva quebrou

Nadamos até o fim das nuvens
um minuto e até mais

Fôlego deslizando no concreto partido
beleza torpe pra quem perde o tino

Vendaval em furor indomado
empoeirando o fantasma ubíquo

Bebida doce que arde vã
à procura de limão e sal

Embriaguez da perda estúpida
cegueira súbita do amanhã revolto

Agarrar-se a deus, diz a senhora
melhor seria varrer as capitais

Colocar a sujeira em sacos
e atirar nos caminhões

quarta-feira, 11 de janeiro de 2012

Um homem confesso

Sim, eu o matei. E não me arrependo. Mas sou um cara que é amigo da justiça. Por isso o pernoite na esquina da décima-quinta. Eu tinha planejado desde o início, mas estava esgotado e preferi deixar toda aquela burocracia e enrolação pra manhã seguinte. Quando o sol nascesse. Não levei o trabuco pois tive medo que me matassem. Alegariam legítima defesa, sabe como é, e além do mais é só você estar armado para alguém querer te ceifar. Mas detalhei o lugar em que tinha guardado as evidências. Tá tudo lá taquigrafado por aquela negona. Não, sou preconceituoso não, hoje em dia qualquer merda que você fala já te cobram indenização por dano moral. Porra, minha mulher era uma negona. Mais linda e gostosona do que a estenógrafa, é verdade, mas eu chamava ela assim direto, e te garanto que ela curtia. Não precisa me olhar desse jeito. Eu já fiz minhas pazes com a vida, tudo o que eu precisava era apagar aquele bastardo. Eu não ia ter sossego enquanto não mandasse aquele puto pro inferno, você me entende. É verdade, eu até pensei em sodomizar o covarde, olho por olho, lei de talião. Mas eu logo percebi que não ia conseguir. Nada a ver com caridade. Não gosto de homem, nunca gostei. Não sou veado. Hahaha, sabia que você ia falar isso! O seu politicamente correto é muito previsível. Pois fique sabendo que o meu irmão é veado, e eu sou o único de toda a família que trata ele como homem. Porque ele é homem. É veado, e é homem. Ele é um dos filhos da puta mais fantásticos deste mundo, eu amo o cara, amo mesmo. Sim, foi com ele que você trombou lá na porta. Ele tava me contando umas paradas incríveis, acredita que ele tá pra casar? Assim, de papel passado, pra você ver que o mundo evolui. Como eu ia dizendo, tá tudo nos autos. Eu tinha que fazer aquilo. Sei que é contra a lei, e é bom que seja. Não é certo as pessoas ficarem se acabando por aí. Eu vou passar uns anos trancado, é só isso. Não, não tenho medo dos outros. O que tiver que ser, será. No final é todo o mundo gente mesmo.

sexta-feira, 6 de janeiro de 2012

Sophia

She told me a few things, many of them fled, others I tried to write down.

Consider the worse, so that, when it doesn’t come, you appreciate more what arrives.

Stay open for the best that can come your way.

Face rejection boldly, keeping always the head up and the heart clean.

Reciprocate every smile. Create them in the faces you see, as often as possible, and don’t mind the failed attempts.

Enjoy the day that fades away and the wind that blows by.

Love with no restrictions. Give of yourself wisely.

Walk the streets seeing people, not just the asphalt or the sidewalk.

Sing.

Look everyone in the eyes. Listen. Speak only what can help.

Stay steady. Focused. Active. In peace.

Strong.

*
Ela me disse algumas coisas, muitas fugiram, outras tentei anotar.

Considerar o pior, para que, quando ele não vier, o que chegar tenha mais valor.

Estar aberto ao melhor que pode vir.

Enfrentar a rejeição, mantendo sempre a cabeça erguida e o coração limpo.

Retribuir todos os sorrisos. Criá-los nos rostos que vir, sempre que possível, e não se abater com as tentativas frustradas.

Aproveitar o dia que finda e o vento que passa.

Amar sem restrições. Entregar-se com critério.

Andar pelas ruas vendo as pessoas, não só o asfalto ou a calçada.

Cantar.

Olhar todo o mundo nos olhos. Ouvir. Falar somente o que pode ajudar.

Ser firme. Focado. Sereno. Ativo.

Forte.

quarta-feira, 4 de janeiro de 2012

A bancarrota

Ele pensava. Olhava em volta, frêmitos no peito, a janela sugestiva sob o céu desabando em fúria. A duas portas, o elevador o esperava glacial. Numa mesinha, um maço, abandonado, de cigarros finos. Há anos havia parado, temendo o coração. Apossou-se deles, afinal, agora, morrer do coração seria um bálsamo. Dirigiu-se com passos pesados à sala de café, onde apanhou uma caixinha de fósforos. A primeira tragada em tanto tempo quase o fez tossir. Sua mente esvaziou-se diante do ato de fumar, como se tudo tivesse subitamente se reduzido a uma sala pouco ventilada, em que um alquebrado debilmente retomava um vício. Um ritual esquecido. Nada como a simplicidade de inalar a fumaça, segurá-la no pulmão, e devolvê-la ao ambiente, engendrando uma sutil excitação, uma falaz liberdade, um agressivo e insensato desdém. Apagou a guimba numa xícara, atirou longe o resto do maço, e desceu. O que tinha a dizer era pouco. Precisava apenas sustentar o olhar, diante das luzes ofuscantes, dos rostos indignados e dos microfones, que regurgitariam, numa náusea pungente, toda a estupidez que ali o conduzira.