N'água e na pedra amor deixa gravados
seus hieróglifos e mensagens, suas
verdades mais secretas e mais nuas.

"Entre o ser e as coisas"
Carlos Drummond

quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012

Fiel

Foi melhor assim, pensou Marisa enquanto abria o maço dos cigarros que Joalvo não suportava. Arrancou o papel cinza que os envolvia e, por força do hábito, aspirou profundamente o cheiro inebriante do tabaco. Era tudo o que se permitia fazer desde que fundira ao dele o seu endereço. Retirou um cigarro, colocando-o, com movimentos lentos, na boca entreaberta, e, com o isqueiro antigo, que ganhara de outro homem, num passado tão remoto que ela não conseguia ligar ao presente, acendeu a ponta, sugando calculada, mas vigorosamente, a fumaça através do filtro branco.

Viu os olhos dele. Olhos vivos e desolados, ao contato das suas palavras de despedida, do seu perfume agridoce, da sua face incólume. Não parecia haver restado traço algum do brilho úmido que tantas vezes havia gerado neles. Olhos secos. Agudos. Impotentes diante da resolução inabalável, consequência furtiva da ação de uma criatura dissolvente e imaterial que, sob relances míopes e tímidos, nascera às escondidas e ganhara aos poucos dimensões consideráveis, conduzida pelo balanço das vontades, tomando o leme de assalto e, num sopro mais forte que ameaçava revolver as águas, sussurrava aos seus ouvidos que era hora de aportar.

Uma lágrima escorreu solitária e se encontrou, na língua, com o cigarro, levando-a à ideia de uma inalação do fluido que é o símbolo e o resultado de uma emoção intensa e carregada de sentido. Quis a descida de mais uma, mas a serenidade já a dominava. Sem abandonar a beleza dos olhos de Joalvo, deu a última tragada.

Nunca mais o veria. Mas prometeu-se, como fidelidade ao enlevo sublime que a elevara sem enganos à face mais calma do deleite, que a arrebatara por todos aqueles anos, tão sutil e tão definido, tão inteiro e tão gratuito, a um só tempo contido e transbordante, jamais esquecer os seus olhos.

Um comentário:

Gelly A. disse...

"Guardo dentro de mim seus olhos"... lembra?
Esses fins são sempre incrivelmente tristes, mas, ao mesmo tempo, geram textos assim, belos.