N'água e na pedra amor deixa gravados
seus hieróglifos e mensagens, suas
verdades mais secretas e mais nuas.

"Entre o ser e as coisas"
Carlos Drummond

segunda-feira, 5 de março de 2012

Asas do poeta

a Curt Bois

Vulcanizadas emoções.
Sente pra mim?
Preguiça de lavas, de ebulições.

Frieza de letras, espaços e sinais.
O que acontece, quando gelo e magma se encontram?

Caretas ela faz raivosa ao espelho, falsetes ressonados pelo vidro insolente, arquitetura de olhares revolvidos na ilusão.

Inumeráveis urdiduras, costurando crimes e recortes de jornal, pé ante pé, na rua, em movimentos hábeis e nervosos, exemplar de violência urbana a qualquer momento eclodindo.

Enquanto bombas explodem no Oriente Médio, mulher lixa as unhas descansando o esmalte no braço da poltrona, com a televisão a prometer beleza, liberdade e o impossível.

Um casal de desconhecidos geme através das paredes, a cama improvisada range, orquestrando vorazmente os fluidos liberados, que se desdobram mais tarde em vitupérios recíprocos.

Soldados queimam livros, estúpidos, ardendo identidades, atirando álcool em fornalhas de redomas inflamáveis. Os fiéis se juntam ao coro dos incendiários, agora confundidos, unidos na ignorância e nas razões sequestradas.

Na península itálica, ecos ancestrais pregam a fraternidade entre os povos, reivindicando o monopólio da sexualidade, em meio a nódoas odiosas e clamores dissonantes. Nos subúrbios brasileiros, pastores carregam máquinas de leitura para cartões de crédito desgarrados.

Navios clandestinos mancham de vermelho os oceanos, plataformas expelem viscosidades negras na imensidão, envolvendo a vida que perece sem defesa, pagando tributo à ambição demente.

Acampados, defrontando monumentos erigidos à cobiça, bradando na praça a sacudir a estrutura vil, coberta da ferrugem da tirania, revestindo-se com o emblema do inconformismo deliberado, gritam os incompreendidos a sede recôndita e inesquecida.

Não eram as horas do repouso, infravermelhas em sua fatigada inexistência, eram horas de tensão, amores ultravioletas, exigentes e difíceis, sobrecargas em nossos débeis corações. As horas, descoloridas e caóticas, dançam seus ventos aleatórios, ar, frio, calor e umidade, valsa de dores, palavras e desentendimentos.

O poeta canta. É um velho subindo escadas de bilblioteca, procurando no muro o café em que todos eram gentis. Sua voz é pausada e entoa, cristalina, cada sílaba áspera, cada fonema luminoso. Não lhe preocupam as rugas, não lhe atormenta o tempo atroz, ele é leveza e ternura a recitar a epopeia de um mundo sem paz.

Quero ser, em seu reconhecimento, pisando com a sola todos os chãos, incorporando a esperança triste de seus passos, num salto aloprado e improvável, o alegre desbravador, o guardião do assombro primordial, o primeiro poeta vivo a narrar a paz.
 

 


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