N'água e na pedra amor deixa gravados
seus hieróglifos e mensagens, suas
verdades mais secretas e mais nuas.

"Entre o ser e as coisas"
Carlos Drummond

segunda-feira, 30 de janeiro de 2012

quinta-feira, 26 de janeiro de 2012

Lubricidade

Ele não queria um espetáculo. Não lhe eram agradáveis os infames liames do incesto, ele que não tinha família, sequer vestígios, mas aquela mulher era seu sopro, seu ar, seu vento, o que restaria após uma noite rasgada na carne da ânsia, labareda de tora escassa.

Era bem de seu feitio evaporar-se abandonando cinzas, como um vitral descolorido numa janela de maçonaria. A abundância de aliciantes melodias, untadas com quimeras sorrateiras, dava-lhe a qualidade das ninfas revestidas de purpurina roxa e adesiva.

Ele, como folha de papel vermelho vivo, proporcionava à sua cola de brilhos uma superfície plana, logo porosa e sulcada por ranhuras ásperas em que suspiros sangravam.

Afinal, chegou ao intento de estourar por si mesmo aquelas bolhas de sabão que insistiam na manutenção de sua integridade iludida, antes que sua explosão espontânea configurasse uma hecatombe para sentidos semialertas.

Não lhe importavam as ruas escorregadias agora. Na companhia do nada, sentia o resiliente pulsar de seu coração, físico, material, inteiriço, composto organizado de química e eletricidade, e toda a vasta fisiologia que lhe permitia andar sob a noite que suas córneas registravam.

Subindo ladeiras, encontrava a si mesmo no espelho do asfalto molhado. Exposto ao céu nublado caindo como conta-gotas, seus cabelos se ondulando nas fissuras de seu rosto, era um prazer recriado a inalação do sereno em seus pulmões, e nada lhe faltava mais no manso cavalgar da madrugada.

sábado, 21 de janeiro de 2012

O trovão

Não quero mais tobogãs ou mergulhos na pedra.

Colocarei meu rosto debaixo das águas
que despencam ladeando a rocha,
imperiosas sob o cetro da gravidade.

Avistarei iridescentes vapores protegendo as pupilas
de um brilho que se me afigura excessivo,
guardarei nelas todas as cores do espectro –
não as abandonarei, não andarei cinco metros
sem o translúcido anteparo de suas curvas.

Imergirei nos pontos mais profundos,
testando intrépido o poder de meus membros,
sustentando, ávido por distâncias,
a respiração interrompida pela ausência de brânquias
concebida de antemão.

Descerei, molhado, escadarias de degraus altos e longos,
com os pés descalços sobre o chão pedregoso.

Deitarei na grama sob o sol que se esconde, considerando
finalmente abrir, à força se necessário,
um buraco na terra, introduzindo ali
os estrondosos relâmpagos da tempestade fecunda.

segunda-feira, 16 de janeiro de 2012

À beira da estrada, com a geladeira no colo

A ponte ruiu
a chuva quebrou

Nadamos até o fim das nuvens
um minuto e até mais

Fôlego deslizando no concreto partido
beleza torpe pra quem perde o tino

Vendaval em furor indomado
empoeirando o fantasma ubíquo

Bebida doce que arde vã
à procura de limão e sal

Embriaguez da perda estúpida
cegueira súbita do amanhã revolto

Agarrar-se a deus, diz a senhora
melhor seria varrer as capitais

Colocar a sujeira em sacos
e atirar nos caminhões

quarta-feira, 11 de janeiro de 2012

Um homem confesso

Sim, eu o matei. E não me arrependo. Mas sou um cara que é amigo da justiça. Por isso o pernoite na esquina da décima-quinta. Eu tinha planejado desde o início, mas estava esgotado e preferi deixar toda aquela burocracia e enrolação pra manhã seguinte. Quando o sol nascesse. Não levei o trabuco pois tive medo que me matassem. Alegariam legítima defesa, sabe como é, e além do mais é só você estar armado para alguém querer te ceifar. Mas detalhei o lugar em que tinha guardado as evidências. Tá tudo lá taquigrafado por aquela negona. Não, sou preconceituoso não, hoje em dia qualquer merda que você fala já te cobram indenização por dano moral. Porra, minha mulher era uma negona. Mais linda e gostosona do que a estenógrafa, é verdade, mas eu chamava ela assim direto, e te garanto que ela curtia. Não precisa me olhar desse jeito. Eu já fiz minhas pazes com a vida, tudo o que eu precisava era apagar aquele bastardo. Eu não ia ter sossego enquanto não mandasse aquele puto pro inferno, você me entende. É verdade, eu até pensei em sodomizar o covarde, olho por olho, lei de talião. Mas eu logo percebi que não ia conseguir. Nada a ver com caridade. Não gosto de homem, nunca gostei. Não sou veado. Hahaha, sabia que você ia falar isso! O seu politicamente correto é muito previsível. Pois fique sabendo que o meu irmão é veado, e eu sou o único de toda a família que trata ele como homem. Porque ele é homem. É veado, e é homem. Ele é um dos filhos da puta mais fantásticos deste mundo, eu amo o cara, amo mesmo. Sim, foi com ele que você trombou lá na porta. Ele tava me contando umas paradas incríveis, acredita que ele tá pra casar? Assim, de papel passado, pra você ver que o mundo evolui. Como eu ia dizendo, tá tudo nos autos. Eu tinha que fazer aquilo. Sei que é contra a lei, e é bom que seja. Não é certo as pessoas ficarem se acabando por aí. Eu vou passar uns anos trancado, é só isso. Não, não tenho medo dos outros. O que tiver que ser, será. No final é todo o mundo gente mesmo.

sexta-feira, 6 de janeiro de 2012

Sophia

She told me a few things, many of them fled, others I tried to write down.

Consider the worse, so that, when it doesn’t come, you appreciate more what arrives.

Stay open for the best that can come your way.

Face rejection boldly, keeping always the head up and the heart clean.

Reciprocate every smile. Create them in the faces you see, as often as possible, and don’t mind the failed attempts.

Enjoy the day that fades away and the wind that blows by.

Love with no restrictions. Give of yourself wisely.

Walk the streets seeing people, not just the asphalt or the sidewalk.

Sing.

Look everyone in the eyes. Listen. Speak only what can help.

Stay steady. Focused. Active. In peace.

Strong.

*
Ela me disse algumas coisas, muitas fugiram, outras tentei anotar.

Considerar o pior, para que, quando ele não vier, o que chegar tenha mais valor.

Estar aberto ao melhor que pode vir.

Enfrentar a rejeição, mantendo sempre a cabeça erguida e o coração limpo.

Retribuir todos os sorrisos. Criá-los nos rostos que vir, sempre que possível, e não se abater com as tentativas frustradas.

Aproveitar o dia que finda e o vento que passa.

Amar sem restrições. Entregar-se com critério.

Andar pelas ruas vendo as pessoas, não só o asfalto ou a calçada.

Cantar.

Olhar todo o mundo nos olhos. Ouvir. Falar somente o que pode ajudar.

Ser firme. Focado. Sereno. Ativo.

Forte.

quarta-feira, 4 de janeiro de 2012

A bancarrota

Ele pensava. Olhava em volta, frêmitos no peito, a janela sugestiva sob o céu desabando em fúria. A duas portas, o elevador o esperava glacial. Numa mesinha, um maço, abandonado, de cigarros finos. Há anos havia parado, temendo o coração. Apossou-se deles, afinal, agora, morrer do coração seria um bálsamo. Dirigiu-se com passos pesados à sala de café, onde apanhou uma caixinha de fósforos. A primeira tragada em tanto tempo quase o fez tossir. Sua mente esvaziou-se diante do ato de fumar, como se tudo tivesse subitamente se reduzido a uma sala pouco ventilada, em que um alquebrado debilmente retomava um vício. Um ritual esquecido. Nada como a simplicidade de inalar a fumaça, segurá-la no pulmão, e devolvê-la ao ambiente, engendrando uma sutil excitação, uma falaz liberdade, um agressivo e insensato desdém. Apagou a guimba numa xícara, atirou longe o resto do maço, e desceu. O que tinha a dizer era pouco. Precisava apenas sustentar o olhar, diante das luzes ofuscantes, dos rostos indignados e dos microfones, que regurgitariam, numa náusea pungente, toda a estupidez que ali o conduzira.