N'água e na pedra amor deixa gravados
seus hieróglifos e mensagens, suas
verdades mais secretas e mais nuas.

"Entre o ser e as coisas"
Carlos Drummond

segunda-feira, 27 de dezembro de 2010

Amor fati, sem subterfúgios

O cheiro de hospital o enervava. Antônio esperava no balcão a papelada a assinar. Beto, o cheio de vida, o alegre, o risonho, o otimista incurável, sedado em um dos quartos, poucas horas depois de não conseguir morrer. Antônio, o cético, o macambúzio, o pessimista convicto, impaciente, ansiava por um cigarro. O relógio indicava três da manhã e sua cabeça doía. A recepcionista, a par da situação, tentou inutilmente amenizar seu sofrimento com um tom suave. A caneta que lhe emprestou falhou, e ele mal conseguiu balbuciar. A mulher entendeu e estendeu-lhe outra, que fluiu com sua tinta azul, deslizando no papel o rabisco que usava como marca. Lembrou-se de quando assistira à performance de ioiô de um sujeito que visitara o colégio e saíra dando autógrafos aos meninos mesmerizados. Estupefato diante de linhas ininteligíveis, achou que ele era estrangeiro e escrevia com outro alfabeto, até que Beto o socorreu explicando que às vezes não dá para entender as assinaturas. Passou aquela tarde desenhando, buscando uma forma bonita com a qual mascarar o próprio nome. Saiu e percebeu que chuviscava. Acendeu o cigarro, dando passos lentos para lá e para cá. “O que vou dizer a mamãe?”, indagou-se sabendo que aquilo a mataria. O seu querido, o seu xodó estirado numa cama de hospital, inconsciente após uma lavagem estomacal. “Ela nem sabe que Fernanda o largou”. A esposa do irmão também desconhecia os eventos daquela noite. Quem fez as vezes de anjo da guarda foi uma vizinha que tinha a chave do apartamento e entrou desabalada quando ouviu os gritos. Boa maneira de tentar se matar, tomar trinta comprimidos e sair berrando a quem quiser e a quem não quiser ouvir. Antônio antecipava o dia seguinte e distraiu-se remoendo o tema da aula que daria às sete, o amor fati nietzscheano. Não era fã de ironias, apesar de sua aguçada veia mordaz. As horas passavam, a chuva suave caía, o maço em seu bolso se esvaziava. Embaralhando na mente os rostos da mãe e da cunhada, entrou e pediu um café. Dando passos lentos para lá e para cá, apanhou o celular, olhando a noite clarear, e apertando os botões chegou ao nome dela. Ele tentou se matar, esse é o fato, e não há subterfúgios. Fernanda, voz vacilante, ia já para lá.

quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

Beethoven

Quinta-feira. Luzes apagadas, movimento-me tateando as paredes. Elas me cercam, muros opacos, ásperas cavidades. Ouço o telefone tocando na sala ao lado, remanescente obsoleto funcionando sem luz. Distante agora das paredes, tateando agora o ar. Agora. “Alô?”, pergunto, para escutar o sinal de linha. Sem bina, a relíquia sossega e não chama de novo. O que fazer, rodeado de livros, e mais nada, procurar um fósforo e uma vela. “É o que dá ser imprevidente”, penso dando-me conta de não ter nenhuma. Debruço-me sobre a janela, toda a cidade apagada, lua nova, céu cinzento, breu completo. Resolvo então sentar-me na confortável poltrona, ponho-me a ouvir o Beethoven gravado em minha mente, heroico, furioso, como um preso na solitária. Cego por uma noite, mas por dentro imagens deslocando-se lépidas num cinema particular. Ondas de lembranças, marés de fantasias, criança descobrindo o mar, homem sem conseguir escutar a menina, colares atirados, tudo se mistura em meio a água e sal. Terra firme, montanha, neve, tornozelo cortado, alpinistas prestes a se espatifar, safando-se na última hora. Tanto esforço, tanto suor e sangue, furando túneis, arrastando-se em canos rumo ao céu aberto, liberdade, liberdade, liberdade. O temporal retoma sua sinfonia de trovões e clarões, água desabando ruidosamente nos telhados, nos vidros das janelas fechadas, abrigo. Ao longe, gente se afogando, bens destruídos, vidas transtornadas, calamidades públicas, deslizamentos, estados de emergência. “Amanhã”, antecipo, “limpar o que a água sujou”. O homem, a natureza, o combate, a lida, sobreviver. Ao som de Beethoven, o destino, a alegria.