N'água e na pedra amor deixa gravados
seus hieróglifos e mensagens, suas
verdades mais secretas e mais nuas.

"Entre o ser e as coisas"
Carlos Drummond

domingo, 27 de junho de 2010

O poeta vagabundo

Douglas McFarlan era um aficionado pela sétima arte. Herdeiro de uma vasta fortuna, sempre teve condições de bancar sua paixão. Colecionava filmes, possuía milhares deles.

Entrou na faculdade, passando no último lugar. Não deu certo. Suas sessões noturnas de cinema em casa não acabavam antes das seis. Tomava um banho, mas não conseguia evitar o sono que lhe crescia como uma bola de fogo. Todos os professores o expulsavam eventualmente.

Largou tudo. A família logo se opôs. Não demorou, veio a depressão. Meses no quarto, sem sair nem para comer. Se não levassem, morreria de inanição. "Vamos ao médico", diziam os parentes quando ele destrancava a porta. Não queria saber de nada. De ninguém. Só de cinema. Assistia uma fita atrás da outra. Não parava para se alimentar, com um olho na comida e o outro na tv. Só dormia se estivesse no meio de um filme.

Mas a luta pela solidão seria mais árdua. A pressão aumentou. Falavam agora em internação. Douglas estava calmo. A decisão se formara nele ao longo de todos aqueles meses. Às quatro e meia, tomou um táxi rumo à rodoviária. Pegaria o ônibus às seis, para longe, longe dali. Em uma metrópole anônima, faria de rua e poesia o seu ganha pão.

segunda-feira, 21 de junho de 2010

O homem que congelava McDonald's

Após anos hackeando emails de figurões do mundo financeiro, Jorde Torres amealhou uma fortuna considerável com aplicações na bolsa. Tamanho foi o seu sucesso que pôde criar três empresas, eventualmente vendidas, que revolucionaram a tecnologia de redes, ampliando o escopo de possibilidades de interação de computador para computador.

Mesmo abandonando o mundo dos negócios, Jorde continuou ativo na espionagem. Mandava emails falsos, adulterava páginas, contaminava redes, transferia vultosas somas, fazia justiça com as próprias mãos. Assim ele justificava suas invasões, enxergando-se como o Robin Hood da cibercultura.

Certa vez, numa de suas leituras de rotina, deparou-se com uma informação catastrófica. A rede de lanchonetes McDonald's estava prestes a declarar insolvência.

Jorde possuía muitas virtudes, mas o comedimento não era uma delas. E ele era louco - até então, apenas figuradamente - por aqueles hambúrgueres. Big Mac, Quarterão com Queijo, McChicken, McMax, McNífico Bacon, mesmo os simplórios hambúrguer e cheeseburger, o infame McFish, e, obviamente, as batatas fritas.

O desespero e o terror que se apoderaram do espírito de Jorde naquele fatídico instante não podem ser descritos. Insone, varou a madrugada rezando, embora se dissesse ateu, chorando, gritando, chutando portas e quase quebrando o dedão no processo.

Foi quando abandonou qualquer esperança que, com o Sol nascendo, teve uma ideia brilhante. Compraria um freezer. Não. Um não bastaria. Ele precisaria de muitos. Como o dia que nascia era uma terça, o nosso herói foi logo pegando os classificados. Optou por um galpão na zona oeste e outro na zona leste, para que, num eventual apagão, pelo menos um deles se salvasse. Encomendou trezentos freezeres. Um mês depois, já acumulava mais de dois mil sanduíches congelados.

Jorde estava feliz. Podia comprar dúzias de sanduíches por dia, até que a lanchonete sumisse definitivamente do mapa. Desafiando o destino, sentia-se acima da morte.

Teve início, então, mais um capítulo de suas brilhantes ideias: uma pirâmide-freezer, armazenando hambúrgueres para a eternidade.

domingo, 20 de junho de 2010

Treze anos, Estados Unidos

O ano de 1994 foi um ano-chave para mim. E, por incrível que pareça, o fator determinante foi a televisão. Chegou a tv a cabo em minha casa, logo em janeiro. Mais especificamente, dois canais mudaram a minha rotina e ampliaram o meu universo: MTV e ESPN.

Começando pelo segundo, devo primeiramente dizer que o futebol havia deixado de ser o meu esporte número um. Desde que vi Magic Johnson estampando a capa de uma edição da Veja, em 1991, e li a matéria sobre a estrela do basquete americano admitindo que era HIV positivo, fui me inclinando na direção desse esporte. Comecei a jogar numa escola, comprei um video do Magic, e me divertia imensamente com os games "Lakers vs. Celtics" e "Bulls vs. Lakers". Em 1993, passei a assistir as transmissões de NBA da Bandeirantes, na faixa nobre do esporte, e invejava um colega que via os jogos pelas transmissões americanas. Finalmente, a ESPN deu as caras em minha casa, e a partir daí acompanhei ainda mais de perto a liga de basquete americana.

Infelizmente, o meu time, o Seattle Supersonics, que havia tido a melhor campanha na temporada regular (a primeira sem Michael Jordan desde 1984), foi eliminado na primeira rodada dos playoffs, para o Denver do poliglota filantrópico Dikembe Mutombo. Foi uma tragédia. Prostrado em frente ao Sportscenter, eu não acreditava.

O Brasil de 1994 era um time decente, com um excelente goleiro, bons volantes e grandes atacantes. Comemorei muito a primeira copa vencedora do Brasil em minha existência, mas posso afirmar, com certeza, que uma eliminação do Brasil não doeria tanto quanto doeu a do Seattle.

E, falando em Seattle, 1994 foi o ano em que, através da MTV, conheci o Nirvana e outras bandas daquela cidade, e em que senti amargamente a perda de Kurt Cobain. O primeiro clip da banda a que assisti foi "Heart-shaped Box". Não habituado a rock pesado, de início a música não me agradou. Mas foi só ver "Smells Like Teen Spirit" que, transportado às minhas antigas aulas de natação (em que o alto-falante tocava essa música), constatei que já gostava de Nirvana e não sabia.

Música e basquete, uma combinação viva ainda hoje em minha história. Provavelmente, até o fim.

sábado, 19 de junho de 2010

Celtic Pride

Thursday night in L.A.
Stars purple gold
Green ray, a shadow

Hollywood ending.

But the end is but the beginning
It's about never giving in
Together, we can accomplish anything

So see you next year.

domingo, 13 de junho de 2010

Nove anos, Itália

Eu estava na casa do Joãozinho. Não me lembro qual jogo passava, mas se tivesse que arriscar diria que foi algum da seleção dos Camarões. Roger Milla foi o grande heroi dos underdogs de 1990. Liderou seu time à vitória na estreia, contra a então campeã reinante, a poderosa Argentina. Torci bastante para o camaronês quase idoso, que dava ares africanos à copa - algo, para os meus olhos infantis, inédito. Aliás, o Joãozinho era descendente de africanos. Havia se mudado do meu prédio para uma casa enorme, um ou dois anos antes. Seus pais eram ricos e, provavelmente, não podiam ter filhos. Eu sempre me perguntava se Joãozinho, que devia ser um ou dois anos mais novo que eu, tinha conhecimento do óbvio: era adotado. A mim não parecia, e eu tomava muito cuidado para não tocar no assunto. Gostava muito da companhia dele, ia sempre nadar e jogar bola em sua casa. Porém, perdemos o contato antes que pudéssemos conversar sobre desigualdades, preconceitos e injustiças.

O Brasil ganhou todos os jogos na primeira fase daquela copa, todas vitórias magras. Suécia, Escócia e Costa Rica, se me lembro bem. Aí, nas oitavas, a defensora do título. Tinha ido mal nos três primeiros jogos, foi pegar logo o Brasil. Eu estava na casa do Rodrigo (era casa ainda). Nunca me esquecerei daquela cena. Lá vem Caniggia, lá vai Taffarel em cima dele, lá vem drible, lá vem bola, lá vem gol. 1 x 0 Argentina. Hasta la vista.

Eu não estava dando sorte para a seleção. Eliminada nas quartas na minha primeira copa, nas oitavas na minha segunda. Isso sem contar a verdadeira primeira copa da minha vida, a de 1982, em que eu tenha talvez participado com choros e acenos, entre uma engatinhada e outra. A romântica copa espanhola, a seleção dourada que não ganhou. Só restava, mais uma vez, esperar.

quinta-feira, 10 de junho de 2010

A origem do Tahash

Pesquisas arqueológicas recentes inflamam onda do Sagrado Tahash

Realizados por um pool de Universidades do Brasil, da Guatemala e do Irã, estudos apontam datas tão remotas quanto o século 19

Escavações de uma equipe interdisciplinar, comandada pelo pós-doutor Alois Perdy, 48, da Universidade Federal de Minas Gerais, e pela doutora Janahy Padar, 37, da Universidade de Teerã, resgataram documentos de migração datados das últimas décadas dos anos 1800. Intactos sob uma estrutura metálica de toneladas, uma série de arquivos da cidade perdida de Jerusalém rejubilaram o mundo científico, dando os primeiros sinais documentais diretos em quase nove séculos.

O novo artigo da dupla de doutores, publicado na revista Science do mês passado, destaca o surto-relâmpago de migrações de Jerusalém para a Etiópia, nos anos 1893-1897. Cerca de duzentos habitantes da cidade perdida mudaram-se para o país africano nesse período. Dados oficiais da Etiópia confirmam todos os nomes, menos cinco. Cruzando os bancos de dados com os de outras nações, os nomes surgem em três países caribenhos: Cuba, Bahamas e Jamaica.

Como nada ainda de concreto se sabe sobre a origem do Tahash, a dupla de cientistas e sua equipe propôs-se a investigar todos os indícios que possam associá-lo à cidade perdida. A teoria do "Tahash Sagrado" alega que a origem se encontra em Jerusalém, e os praticantes da doutrina acreditam que, em duas grandes eras do zodíaco, a cidade perdida se tornará novamente a cidade sagrada, sendo habitada pelos descendentes dos fundadores das três grandes religiões monoteístas ocidentais.

"É um ninho de marimbondos", desabafou Alois. "Seja o que for que você descobrir, vai agradar muita gente, vai desapontar muita gente, e se não espirrar nada vermelho na sua camisa, você já tá no lucro".

Dados oficiais da Organização Mundial da Saúde (ONU) indicam que 57% da população economicamente ativa mundial usam o tahash com regularidade (ao menos uma vez por mês), 31% com frequência (ao menos uma vez por semana) e apenas 14,3% nunca experimentaram. Restam ainda treze países onde o tahash é proibido, mas, em pelo menos outros quinze, projetos de lei para proibir ou regulamentar o seu uso são debatidos nas assembleias.

Clyviya Nottlam,
Estonian Associated Press

quarta-feira, 9 de junho de 2010

O muro e a revolução

Havia chovido no dia anterior. Uma tempestade de gelo cortante, ventanias violentas, marcas em carros, vidros quebrados, janelas desprevenidas inundadas, árvores derrubadas. A manhã seguinte, porém, parecia transportada de outra estação. Não choveu ontem, nos tentava a paisagem azul e dourada e, sobretudo, quente.

Os meus passos naquela manhã são irrelevantes. O que fez o dia digno de lembrança foi o muro da casa da análise. Um muro amarelo, daqueles que se você encostar a mão sente a aspereza, se passar a mão se machuca. Nessa tarde, tinta preta, inescorrida, estampava o A dos anarquistas, dentro de um círculo negro sobre uma inscrição de Revolução.

Quanto a eu ter sido anarquista no passado, não me aventuro a definir a coincidência como acaso. Quanto ao amarelo ser a cor do intelecto, admiro a sintonia. Quanto à aspereza, ela se transmuda em fragrância no primeiro lance da escada.

terça-feira, 8 de junho de 2010

Cinco anos, México

Gosto de copas. Sempre gostei. A primeira de que me lembro é a de 1986, no México. Eu me encantava com o meu primeiro álbum de figurinhas, que, com umas poucas oito ou dez páginas, exibia fotos das seleções, naquela pose clássica de alguns em pé e outros agachados, e destacava os principais jogadores da época, uns dez ou doze nomes que apareciam com seus rostos e camisas. Lembro-me de uns dois ou três alemães (na época, alemães ocidentais), um paraguaio, talvez um argentino (me escapa agora a memória), ingleses, franceses, italianos, e o que mais me marcou foi a de um polonês. Se me lembro bem, a foto dele era peculiarmente estranha, o pescoço parecia estar descolado do corpo, com a cabeça pendendo para a esquerda. Ela me dava arrepios. Lembro-me do Irã nessa copa. Não, acho que na verdade do Iraque. E tinha a guerra Irã-Iraque na época. Saddam era coleguinha dos Estados Unidos. Mas o que mais me lembro nessa copa é a França. Eu, um moleque de cinco anos, insanamente enraivecido, logo após a derrota nas quartas de final, apanhei uma caneta (numa ironia amarga, de tinta azul) e risquei a figurinha do amaldiçoado Platini, o maestro do time francês. O álbum se perdeu por aí. A lembrança, não.

segunda-feira, 7 de junho de 2010

O cenário e a eterna recordação

Não suporto mais esta enxaqueca. É tão forte que... meu Deus, será um derrame? Ou... acidente... acidente vascular alguma coisa... cerebral! É isso. Acho que é AVC o nome. Bom, mas acho que não tô tendo, porque se tivesse já teria arrebentado tudo. Ou talvez não... mas não vou levantar daqui, daqui não saio, não arredo um centímetro. Eu já vou estar morta quando eles perceberem... vão se sentir culpados... cara, puta-que-pariu, como é que me vêm com aqueles pedidos! Dois deles! Um casamento... e uma bicicleta. Mas não é qualquer bicicleta não, né, porque o Di tem catorze anos e com essa obsessão por pedalar já quer escalar o Himalaia em duas rodas. E o casamento... ah, o casamento é coisa pouca, nem eu nem ele temos ânsia de festa, champanhe e badalações... no fim, os dois pedidos têm o mesmo preço. E eu... eu só tenho grana pra um... mas e se... não, não dá pra dividir. E pra chegar no dobro vai demorar, eu não tenho tanto fundo pra aumentar reserva rápido... a enxaqueca... não é AVC não... que sono...

"Oh Iaaaa.... Ooooohhhh I'm still alive, ehehe Iaaa Ooooohhh I'm still alive, heeey..."

Não era AVC não... lá vão os dois... nunca vi tanta empolgação por causa de uma banda. Vai ser bom passar uns dias em Sampa. Só preciso aguentar essa overdose até o dia da viagem. E já decidi. Farei o saque lá mesmo.