N'água e na pedra amor deixa gravados
seus hieróglifos e mensagens, suas
verdades mais secretas e mais nuas.

"Entre o ser e as coisas"
Carlos Drummond

sábado, 30 de março de 2013

Piso e altura

Em casa
uma lagosta
ganha asas ferozes:

eu mergulho no vendaval invertendo gravidade,
com crosta seca me puxo quebrando,
músculo nu nascendo lisa e espessa camada,
camaleão-ouriço deliberando ranhuras.

Sou dono dos meus pés,
estrondo ou sussurro planto na terra.

sábado, 23 de março de 2013

Olho de aranha

Miragem,
visão de fora sem dentro,
confiança infantil
em exatidões sonhadas
sem serrar os olhos.

Luminosidade,
condensada em condutos
penetrando, na acuidade de navalha
polida, glóbulos de instabilidade
desmascarada,
escorrendo viscos de encaixes perfeitos,
frágeis como areia úmida
que se atira em lente abafada.

Imagem,
lúcida opaca,
fisionomias em milímetro
a cada piso rodadas,
tremor rumando ao horizonte,
separação de terra, vácuo
e água.

quinta-feira, 14 de março de 2013

Astrolábio

Entortei o meu olhar,
mas não foi mal querer.

Girei os espelhos
e o plano das luzes,
deslumbres embaralhados
entre labutas;
respirar nunca mais
foi transparente,
resto de porto
no sal sem chão.

sexta-feira, 8 de março de 2013

Pincelando o assombro no inatingível

“Meu pai diz que quase o mundo inteiro está dormindo, todos que você conhece, todos que você vê, todos com quem você conversa. Ele diz que apenas algumas pessoas estão acordadas, e elas vivem num estado de total e constante deslumbramento.”

- Joe contra o Vulcão, John Patrick Shanley (1990)

No olhar caindo
um colorido de fluências esparramadas,
em todo canto um sentido,
do seguro ao lugar sem definição
em que manam as imagens.

Sons de cigarras e de carros
no concreto tingido do exíguo verde
remanescente do que era e apenas é
na tela da memória dos elementos básicos,
como a rugosidade das folhas
e a consistência dos troncos,
criação de mágicas suposições
em que a mente se desvia, desvairada
e consciente,
esquecendo a matéria imediata
no fulcro das projeções.

Peregrinar tão cedo,
em cada solfejo do caminho
a carícia do ar entrando
e soprando a atmosfera enriquecida
do hálito dos seres,
atravessando o feio e o bonito
na união inquisidora
das passagens,
pisando com pele ou papila
os gostos múltiplos
dos ventos e das águas,
abrindo ouvidos à luz
e pupilas à sucessão incansável
dos batimentos.

Contemplar os porquês
e as respostas ausentes
interpeladas,
nelas mergulhando
e no estrondo encharcado
implodindo exclamações sem norte.

Mesquinhas usurpações,
na solidão
pérfida e lamentada
de indolentes apartes,
sismos em sangue
clamando o consolo dos unguentos,
aprendizado da insensatez
se arrastando por milênios.

Elaborar no simples
a complexidade pavorosa e fascinada,
destinando-se no presente
à opção inabalada do riso lírico,
envolvendo todos os vazios,
oferecendo às direções instáveis
a flórea radiância,
formulando em gestos ecoados
na concavidade da simpatia,
ou em palavras verberadas
no convexo fleuma do desinteresse,
ligações sem garantia,
magnetismos imponderáveis
de circuitos fugazes,
luminosidade e escuridão
em orlas imprecisas.

sexta-feira, 1 de março de 2013

...que salto sem saber se caio ou aterrisso

Você me alcançou na rua escura,
dizendo o que meu olhar não traduziu,
virando o tempo e coroando,
num retoque breve de cicatriz,
os corpos leves em sincronia.

Você me mostrou um novo abismo,
tocha em punhos,
ponte frágil balançando a cada passo,
barítono e soprano
ressonando em todos os naipes,
convidando na mão estendida
o absurdo de um voo fincado
e de uma etérea raiz.

A canção
me acalenta na madrugada
e me conduz no dia,
dentro de mim te toco sorrindo,
espreguiço nos seus olhos
a exclamação de um intangível acorde,
mistério e raio se projetando no claro azul.

* Fotograma de Silver Linings Playbook, de David O. Russell (2012)