N'água e na pedra amor deixa gravados
seus hieróglifos e mensagens, suas
verdades mais secretas e mais nuas.

"Entre o ser e as coisas"
Carlos Drummond

segunda-feira, 31 de outubro de 2011

Aliança

Ainda assim acredito
Ser possível reunirmo-nos
Num outro nível de vínculo*


Ele queria que o amor reinasse e que todas as pessoas fossem irmãs. Ela queria que, mais do que irmãs, fossem amigas.

Ela sabia que ter o mesmo sangue não era prova de amizade.

Ele e ela não eram tolos. Sabiam que morreriam sem ver o reinado que desejavam. Sem pertencer a ele.

Ele acreditava que, um dia. Ela acreditava num dia antes. Talvez depois.

O tempo era o aliado, ou o algoz.

Sonhos não precisam ser crenças. Crenças não são certezas, nem convicções.

Ele e ela eram simples. Quando escreviam, expunham-se, arriscavam-se, tentavam-se.

Desnudavam-se.

Não há vaidade quando tudo o que está em jogo é viver.

* "Oração ao tempo", de Caetano Veloso.

domingo, 16 de outubro de 2011

Delineações sobre os contornos de uma voz

I – A Brisa

Foi como um leve sopro
O beijo da brisa levou
Longe, além do mais além

Veloz como os dedos de um amante
Carregando tempo, espaço,
Oxigênio, impurezas transmutando
No lépido enlace do ar

Paisagens despontando, amplas,
Revelando distâncias ao alcance da mão
O vento das possibilidades

Arrepios no toque, fios eriçados
Resvalando suaves, enleios
Plenos de súbitos arroubos
Espasmos de gozo arrebatando os sentidos

II – O Vulcão

Desperto, acordado de dormência,
Vermelho, viscoso e quente
Demandando liberdade, em fúria

O vulcão, antes só e absorto,
Reúne as forças primitivas,
Primordiais, no ímpeto do nascimento
Do que foi e sempre será

Nada que possui restará intacto
Sob a caudalosa lava, esfumaçada,
Fim de certezas, anseios ascendendo

No ardiloso painel de durezas
O céu, nebuloso e prenhe
Sentidos vitais pulsando fortes
Arde o elã, arde o ar, arde a vida

III – A Floresta

Remanescentes numa selva obscura
Sombras frescas, raios de luz
Penetrando a densidade das folhas

Feras circundando troncos
Lascas de madeira protegendo a seiva
Mortes, matanças, subtrações de cadeia alimentar
Venenos, garras, presas, brenha inóspita

Ela entra, desconsiderando lógicas,
Sacerdotisa erótica das forças naturais,
Emblema selvagem de feminilidade esguia

Armada com o que o peito carrega
Luz dourada iluminando o breu
Castanhas, frutos, flores silvestres
Adornando soberana, pés descalços sob a chuva

IV – O Penedo

Ela ascende, numa escalada intrépida
O frio do vento nos cabelos soltos
Coração pulsando, vigorosas passadas

Transpondo esforços, pernas cansadas
Resistindo às pedras lisas
Mochilas abertas, cabos, botas pontiagudas
O abismo sob a calma fugidia

Da peregrinação ao topo, divisando
A imensidão almejada, num suspiro
Erguendo os braços, recolhendo o louro

Sem verde, sem perfume, sem coroa
Louro vermelho, percorrendo as veias,
Vida aspirada renovando o impulso
Grito de vitória ecoando pelo vale

domingo, 9 de outubro de 2011

Nuvens concretas

Emoldurando nuvens, eu sentia o gosto do aço gelado, resmungando elogios sem entusiasmo, revirando gestos na procura da melodia original, alternância insólita e súbita de paisagem e chuva, tresloucadas ponderações imunes a qualquer convencimento, novelos enrodilhados à espera de agulhas, resfolegar no compasso de percussão ensandecida, passos calmos e seguros na corda estendida, visão de abismo sob os pés dormidos, ímpeto contido de perseverança, alvo agarrado na certeza da passada.