N'água e na pedra amor deixa gravados
seus hieróglifos e mensagens, suas
verdades mais secretas e mais nuas.

"Entre o ser e as coisas"
Carlos Drummond

sábado, 30 de junho de 2012

A despedida

Os anos passaram como flores que há muito perderam as pétalas, sem nunca fenecer. Vou até a lápide, devolver ao chão a haste carcomida e resiliente, testemunha serena do duro desgarramento. Se um vestígio de semente se esconder por suas estrias, alcançando sorrateiro o ventre da terra, em uma brevidade indefinida nascerá a planta viçosa e discreta da desilusão e da liberdade.

sexta-feira, 29 de junho de 2012

Orfeu no rastro de Chronos

Naquela noite eu te olhava e via em você uma mulher pela primeira vez. Parecia suspensa no colo instável da expectativa quando cheguei quebrando sua distração, cujo caráter me era incógnito e que eu me vi instado, pelo mais remoto fio de vida em mim, a decifrar com ardor imprevisto. Você me viu e eu não pude sentar ao seu lado, como se a lotação das cadeiras prenunciasse a separação inevitável que o tempo urdiria, como um manto escondido na escuridão. E, como aquele Orfeu que ouvimos distantes um do outro, olho para trás num pesadelo apático e te perco para sempre. Você aqui. Você lá. Você em lugar algum. Nem quando estava colada nos meus lábios, nos meus braços, no meu sexo, nem quando eu te fulminava os olhos com meu olhar lancinante, nem quando te arrepiava com o toque doce das minhas mãos deliberadas eu tinha você. Não sei quem você é, nunca saberei. Eu passaria a vida inteira tentando saber, e, desiludido de antemão quanto aos resultados da insana ousadia, me esmeraria em descobrir tudo (isso mesmo, tudo) o que te alegra, tudo o que te toca, o que te move, me desdobrando em alegrar, em tocar, em mover, como o patinador que minuciosamente aprende cada movimento da companheira, para atirá-la ao ar incerto e segurá-la na queda desarmada, num casamento arrojado de entrega e responsabilidade. Eu me dedicaria a saber o que você mesma não sabe, jogar luzes em tudo o que te assusta, para que você percebesse que não é tão assustador assim. Eu estaria ali, ao seu lado, e te ajudaria na delicada arquitetura da sua fugidia felicidade (sim, felicidade). Mas o tempo passou, e você está longe, além de qualquer conjectura, ou tão perto que não nos conseguimos enxergar. Se Eurídice foi engolida por Hades, sigo o rastro de Chronos, rumo a outros olhos, a outra ignorância, a outro desvendar, alterado irremediavelmente pela marca irrefreável da sua fabulosa existência, avançando sóbrio e atento pelo chão molhado de sal.

segunda-feira, 25 de junho de 2012

um canto corta num agudo o ar estéril

hoje um bem-te-vi veio me alertar

- ele só queria soltar sua melodia -

ainda há canto no concreto
há luz diurna sobre a noite cinza do asfalto
e movimento na impaciente orquestra de motores

há céu azul sobre a densidade do vermelho
e riso amigo na gravidez obscura

há luzes feitas de gestos fulminando ilusões coletivas
e um só sangue jorrando no fratricídio da espécie

há vida
como se varre as cinzas de um incêndio
como plantamos sementes sadias

- as últimas -

que resgatamos de frutas mortas

quinta-feira, 21 de junho de 2012

a romper os ardis do medo vão

me vejo às voltas
comigo mesmo

(habito uma prisão sem grades
sem correntes a ofuscar
a mobilidade
das articulações)

da fonte sem lugar
que pulsa sem cansaço

em mim

renovo os votos
da fidelidade mais crucial

(o amor não é mais que a vida
a vida é movimento

e sempre pede

doce ou austera
reservada ou sonora)

penso no que sinto
sinto o que penso

nas bordas da compreensão

e decido

(na velocidade da luz
que de dentro de mim
se solta
e de fora de mim
me penetra

ubíqua
e imperiosa)

tenho enfim chaves intangíveis
o segredo das ilusões
a pólvora do alerta

mancando ainda
atravesso o invisível

domingo, 17 de junho de 2012

quinta-feira, 14 de junho de 2012

varredura

um amontoado de palavras doces
não restaura o cristal partido
nem deixa cacos soltos pelo vento
ou perdidos onde não chega luz

sábado, 9 de junho de 2012

As melodias não se rendem, laceradas ainda

Em uma noite prensada no intervalo de dois dias tensos, Lívia rezava sem convicção. A face de seu pai lhe aparecia como uma pintura, cravada no recesso das suas aspirações. O lago tremulante, refletindo as luzes do morro, lhe sugeria, através da janela e da escuridão, a flutuação inebriante no tom com que a chamava, ora apreensivo, tantas vezes vestido em camada áspera de desnorteamento, ora apático, perdido nas profundezas da sua alma, extraviada do próprio entendimento. A solidez da presença nua e pesada de seus últimos dias se tornava em cinzas diante do inexorável, o compasso surdo e seco do tempo assíduo. Água e sal desciam aos seus lábios, relembrando, à sua sensibilidade dormente, a perseverança rebelde do gosto sobre a insipidez indiferente das horas.

terça-feira, 5 de junho de 2012

da terra mais frágil vem o viço das flores

eu serei
para você
o cinzel

perfurando
esmerado
e preciso

a crosta
diamantina
e tenaz

em torno
da vulnerabilidade
mais desejosa

na qual plantarei
com dedos inermes

a um só tempo

a cor
a brandura
e o espinho

que se move

presto
e seguro

ao sabor
das investidas

domingo, 3 de junho de 2012

na vida microscópica do ar

estou aí
como meu pulmão
está no vento
que acaricia
os meus poros
e chega
suavemente
às suas unidas
respirações