N'água e na pedra amor deixa gravados
seus hieróglifos e mensagens, suas
verdades mais secretas e mais nuas.

"Entre o ser e as coisas"
Carlos Drummond

sexta-feira, 29 de junho de 2012

Orfeu no rastro de Chronos

Naquela noite eu te olhava e via em você uma mulher pela primeira vez. Parecia suspensa no colo instável da expectativa quando cheguei quebrando sua distração, cujo caráter me era incógnito e que eu me vi instado, pelo mais remoto fio de vida em mim, a decifrar com ardor imprevisto. Você me viu e eu não pude sentar ao seu lado, como se a lotação das cadeiras prenunciasse a separação inevitável que o tempo urdiria, como um manto escondido na escuridão. E, como aquele Orfeu que ouvimos distantes um do outro, olho para trás num pesadelo apático e te perco para sempre. Você aqui. Você lá. Você em lugar algum. Nem quando estava colada nos meus lábios, nos meus braços, no meu sexo, nem quando eu te fulminava os olhos com meu olhar lancinante, nem quando te arrepiava com o toque doce das minhas mãos deliberadas eu tinha você. Não sei quem você é, nunca saberei. Eu passaria a vida inteira tentando saber, e, desiludido de antemão quanto aos resultados da insana ousadia, me esmeraria em descobrir tudo (isso mesmo, tudo) o que te alegra, tudo o que te toca, o que te move, me desdobrando em alegrar, em tocar, em mover, como o patinador que minuciosamente aprende cada movimento da companheira, para atirá-la ao ar incerto e segurá-la na queda desarmada, num casamento arrojado de entrega e responsabilidade. Eu me dedicaria a saber o que você mesma não sabe, jogar luzes em tudo o que te assusta, para que você percebesse que não é tão assustador assim. Eu estaria ali, ao seu lado, e te ajudaria na delicada arquitetura da sua fugidia felicidade (sim, felicidade). Mas o tempo passou, e você está longe, além de qualquer conjectura, ou tão perto que não nos conseguimos enxergar. Se Eurídice foi engolida por Hades, sigo o rastro de Chronos, rumo a outros olhos, a outra ignorância, a outro desvendar, alterado irremediavelmente pela marca irrefreável da sua fabulosa existência, avançando sóbrio e atento pelo chão molhado de sal.

Um comentário:

Anônimo disse...

Não encontro adjectivação para o universo que este texto suporta.De tão grande ser, tudo nele caberia e ainda sobraria espaço.
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demasiado espaço.