N'água e na pedra amor deixa gravados
seus hieróglifos e mensagens, suas
verdades mais secretas e mais nuas.

"Entre o ser e as coisas"
Carlos Drummond

sábado, 22 de agosto de 2009

Pena

João Emídio não gostava de si mesmo. A começar pelo nome, sobrevivência esdrúxula do século XIX em plenos anos 80. O garoto cresceu sendo chamado “João Milho”, depois apenas “Milho”, chegando a “Bisavô”, para então sossegar em “Bisa”. Mas isso era só o começo. Os óculos, o jeito desengonçado, a bombinha para asma e as notas altíssimas eram motivos adicionais de chacota. Chegou a errar questões de propósito nas provas, para não acharem que gostava de estudar. Isolando-se dos colegas, deixou de perceber que ao seu lado havia crianças tão doloridas quanto ele.

A adolescência não foi mais promissora. O tempo passou sem que encostasse a língua na de uma mulher. Chegou assim aos dezessete anos. Foi quando, para sua surpresa, uma colega com quem fazia trabalhos o beijou. Sem saber o que fazer, fez o mesmo que ela, mexendo a língua dentro da sua boca. Taquicardiamente, deixou-se escorrer por várias horas, do mesmo jeito. Palavras, raras, sussurradas a roçar o ouvido. Descontava na garota os anos de escárnio e auto-desprezo que sua virgindade total gerava.

Era a hora. Na missa de domingo os pais sumiam. Chamou Regiane. “Ah... não dá, tenho que estudar”, desculpou-se soando constrangida. João Emídio sentiu-se ludibriado. Foi, então, uma ficada por pena, por ela saber de sua história e querer “ajudar”? Muito ordinária, essa menina.

No dia seguinte, tratou-a gelidamente. Não retribuía seus sorrisos, não ria de seus gracejos, não dava continuidade às conversas. Ficou assim por vários dias, até que Regiane desistiu. Virou o espelho do amado. Glacial, olhava-o sem piedade.

O ano acabou, assim como o ensino médio. Não se encontrariam mais todos os dias, que alívio. Ou tragédia. Mas quis o destino ou qualquer outra entidade metafísica que ambos gostassem de ciências humanas. Acabaram na Fafich, ele na filosofia, ela na comunicação.

Cruzavam-se sempre. Não se cumprimentavam. Com um ano e meio de curso, esbarraram-se numa vinhada. Emídio se aproximou, conversando fiado. Regiane lhe sorria, parecia que se conheciam agora. O futuro filósofo cumprimentava-se envaidecido. “Então ela gosta de mim”, pensava. Chegou um homem e a enlaçou pela cintura. Deu-lhe um beijo molhado e lascivo. “Este é o Norberto, meu namorado”. “Muito prazer”, respondeu Emídio já saindo.

Se era assim, sabia que Pâmela estava disponível. Foi atrás dela no fim de semana, e nos dias que se seguiram informou-se sobre o outro e os planos noturnos do casal. Levou Pâmela a uma boate de black music, e fez questão de posicionar-se à vista de Regiane enquanto a agarrava. A mulher, ao longo da madrugada, inebriou-se o suficiente para colocar as mãos de Emídio em sua bunda, em seus seios, em seu sexo exposto num vestido sem calcinha. “Eu quero ir no banheiro”, sussurrou bem perto do ouvido para o parceiro ouvir. Pegou-lhe as mãos e se dirigiu placidamente ao banheiro masculino. Transaram britânicos onze minutos. Saindo, deram de cara com Norberto. “Perfeito”, felicitou-se Emídio, tentando conter o sorriso mas não conseguindo.

Semanas depois, Emídio deparou-se com Regiane sozinha na cantina, engolindo alguma coisa assada. Comprou seu lanche e se aproximou da mesa dela. “Posso?”, perguntou, e sentou-se ao receber consentimento. Ela não sorria como no outro dia. Desconcertado, Emídio acabou evocando aleatoriamente um episódio de seus tempos de colégio. “É”, respondeu, “muitas coisas boas aconteceram lá”. Emídio sentia que a frase não estava completa. “Mas tem uma coisa que eu não entendo, quem sabe você possa me esclarecer”, disse Regiane num tom grave. “Por que diabos você começou a me tratar mal depois que a gente ficou?” Emídio sentiu aproximar-se uma taquicardia familiar. Mudo, mirou direto nos belos olhos daquela mulher, até que não resistiu e desviou-se. “Olha, eu tenho que ir, minha aula vai começar. Até.” Regiane levantou-se e desapareceu.

Passaram dois anos se cruzando e fazendo sinais com a cabeça. Não compartilharam mais uma mesa. Até que arrumaram um amigo em comum, sem saber disso. Ambos convidados para uma madrugada no bar, depararam-se incrédulos. Misturaram-se na conversa do grupo. Depois de várias horas e garrafas de cerveja, Regiane quis ir embora. O carro estava na oficina. “Eu te dou uma carona”, prontificou-se Emídio, “você mora perto”.

A viagem foi silenciosa. Emídio procurava um assunto, não encontrava nada, tão tenso estava. Chegaram, ele encostou o carro. “Bom, obrigada”. Quando ia abrir a porta, Regiane surpreendeu-se com a fala do ex-ficante. “Sabe aquilo que você me perguntou?” Emídio controlava esforçadamente a entonação de suas palavras. “Eu achei que você ficou comigo pra fazer caridade”. Regiane a princípio pasmou-se, em seguida lançou-lhe um olhar que não era gélido, não era ressentido, não era amargo: era de pena. E foi isso o que ela disse: “que pena”.

Saiu do carro, enquanto começava a chuviscar.