N'água e na pedra amor deixa gravados
seus hieróglifos e mensagens, suas
verdades mais secretas e mais nuas.

"Entre o ser e as coisas"
Carlos Drummond

quinta-feira, 26 de março de 2009

Os óculos

Ela era inusualmente distraída. Costumava esquecer as coisas por todos os cantos. Mais especificamente, seus óculos – estava sempre perguntando repetidamente, “onde estão meus óculos? onde deixei meus óculos? onde você esqueceu meus óculos?” O resultado disso é que eu estava sempre os encontrando, aleatoriamente, andando pelo apartamento – no criado-mudo, na escrivaninha do escritório, na mesinha em frente ao sofá, na pia do banheiro. E geralmente ela estava dormindo como se o mundo nem existisse, estirada na cama, na poltrona do escritório, numa cadeira da sala, apoiada na mesinha do sofá. E então parecia que aqueles óculos eram muito mais do que uma armação sustentando lentes corretivas. Eles pareciam algo vivo, com personalidade própria, que me olhava fixamente como um catalisador de lembranças. Porque sim, aqueles óculos eram antigos, eu lembrava o dia em que ela os tinha colocado pela primeira vez, depois de uma visita contrariada ao oftalmologista. Então eu, como se fossem o que havia de mais frágil, os pegava e ia aonde quer que ela estivesse, olhos fechados, respiração surpreendentemente leve para uma adormecida, e a contemplava como se a cada momento ela fugisse de mim, como se a cada momento eu ficasse mais perto de ficar no mundo sem nada, totalmente só – restando-me somente os seus óculos.