N'água e na pedra amor deixa gravados
seus hieróglifos e mensagens, suas
verdades mais secretas e mais nuas.

"Entre o ser e as coisas"
Carlos Drummond

segunda-feira, 31 de janeiro de 2011

Obrigado pela minha gratidão

Obrigado, Vida. Vida, que não sei se é Deus ou se é natureza, recordo-me de faltas, falta disso, falta daquilo, falta de um não-sei-o-quê, de um não-sei-quando, de um não-sei-aonde. Hoje, aqui, tudo o que tenho é gratidão, e nada me falta. Eu me encharco nela, nado, brinco espirrando água, dou cambalhotas, seguro a respiração até não mais aguentar. Saio molhado, pingando, desabrigado de toalha sob o frio e o sol poente. A noite vem, planetas, estrelas, constelações, galáxias, o universo. Tudo isso existe. Eu existo. Você. Nós todos. Como Alberto, alegro-me com as pedras e com o passar do vento, gotas de orvalho brotando nas folhas, calor de lenha aconchegando a pele. Sou-lhe grato porque sempre, por baixo e por cima de tudo, alguma coisa resta por agradecer. Sou-lhe grato porque a gratidão que sinto me torna pleno e vivo. Sou-lhe grato por agradecer. E, se eu pudesse escolher como retribuir tanta gratidão, eu lhe pediria – que todos encontrem, como eu, sempre, algo a agradecer, e que a gratidão, essa sublime abençoada, seja o nosso ramo, o nosso prumo, canto doce louvando a eternidade.

sábado, 22 de janeiro de 2011

Cuba libre!

A noite era fresca e convidativa. Eu e meus homens, incumbidos de transformar o ano-novo dos imperialistas em poeira, fazíamos cerco à residência oficial do embaixador, um idiota arrogante que não via o tapete escorregando sob os pés. A meia-noite se aproximava e o clima era tenso. Tínhamos que pisar na ponta dos dedos, para flagrar desprevenidos centenas de anglófilos, que sucumbiriam ante a potência de nosso arsenal sanguinário. O pio do cuco soou. Pelo norte, pelo sul, pelo leste e pelo oeste, demos marcha à invasão, sincrônicos. À medida que nos aproximávamos, a música aumentava, e mal podíamos ouvir nossos próprios pensamentos. Mas eles eram claros. Ninguém sairia dali. Ninguém que respirasse.

Entramos desabalados, nossos urros se equiparando às notas do gramofone. Exploramos as salas, penetramos os quartos, conferimos os banheiros, checamos as sacadas. Luzes acesas, nenhuma sombra humana.

– Vazia, comandante!

Com um sinal liberei a horda. Lustres, mesinhas, cadeiras, poltronas, quadros, esculturas, pratos, copos – nada escapou à carnificina. Eu e três subordinados imediatos nos dirigimos à cozinha, cacos de vidro estalando sob os pés. Uma grande porta de madeira escondia uma despensa. Ordenei silêncio. Armas em punho, preparados para uma emboscada, abrimos a porta. Dezenas. Dúzias. Centenas de garrafas da bebida imperialista repousavam inertes no chão de lajota, sob um armário com inúmeras taças.

Um frenesi tomou conta dos comandados. Partiram ávidos, largando a artilharia para apoderarem-se, sádicos, dos vidros e cristais.

– Não!

Eu tinha uma ideia melhor.

– Mande José e Manolo à cidade.

O resto dos homens chegou aonde estávamos. Seu ardor era tal que foi difícil segurá-los.

– Feche esta porta!

A casa, cansada, não apresentava mais nada a ser quebrado. Os homens, entediados, não compreendiam minha atitude. Por que ser condescendente com os imperialistas, perguntavam. Começavam a duvidar de minha lealdade à causa revolucionária. Mas logo Manolo e José voltaram. Traziam litros e litros de nossa aguardente libertada. Havana, tomada, embriagada, comemorava com tiros a derrota dos miseráveis.

Levei todos ao salão.

– Manolo, traga a bebida imperialista! José, distribua nossa aguardente!

Dispostas na enorme mesa, taças e mais taças, que estariam na boca dos imperialistas, foram enchidas com a gaseificada poção negra. Os homens, brandindo suas garrafas, interrogavam-se, perplexos, na expectativa.

– Hoje, neste antro reacionário, viemos acabar com a besta peçonhenta, com os parasitas do norte! E o que encontramos? Nada! Covardes, decepcionaram cada um de nós, que queríamos ver seu sangue jorrando de seus pescoços, suas tripas saltando de suas entranhas! Mas que eles saibam que, o que deixam para trás, nunca mais será o mesmo! Eu os convido, companheiros, a deixar a marca de nossa Ilha em tudo o que antes veio manchá-la! É o que eu vou fazer, agora e para sempre!

Derramando o destilado nas taças, ergui um cristal assoberbado. O grito, coletivo, soou na madrugada de janeiro, acompanhado por tiros, urros e um gosto novo, totalmente novo, de doce vitória.

sábado, 15 de janeiro de 2011

O sueco é a língua mais bonita do universo

Estava, há pouco, revendo Através de um Espelho, um filme do fascinante país escandinavo, cujos personagens parecem instrumentos e expressam a história em fluência musicada. Parando para pensar e consultar os lembretes da memória, eu diria que vi uns treze filmes suecos. Cineastas suecos? Hmm... deixa eu ver... quantos mesmo? Ah, um. Como posso ter esquecido? Mas, eu dizia, não existe no universo língua mais bonita que a sueca. Alguém, conhecendo parcialmente a minha biografia, diria que a ideia é influência das bandas de Estocolmo e imediações, que eu escuto inflamado. Lesado engano. As referidas bandas, TODAS, cantam em inglês, malfadada dicção semi-universal do mundo pós-moderno. Outro, desconhecendo minha biografia, diria que fui abduzido pelas pornozadas e mulheradas e alouradas, tão afeitas ao espírito viking. Ao leitor das primeiras linhas, revelou-se que a língua sueca me enlaçou pelos sons que produz, inserida no conjunto mais amplo de ar, vibração, entonação, ressonância e imagem. Nesta segunda apreciação de Através de um Espelho, escondi as legendas. Epifanicamente, deparando-se meus ouvidos com uma absoluta privação de semântica, a melodia, o ritmo e os contornos desse Sueco, desfrutados como novos, assombrando-me com toda a força do convencimento, não guardaram lugar para incertezas: Sasom i en spegel. O sueco é mesmo a língua mais bonita do universo.

quarta-feira, 12 de janeiro de 2011

Uma noite vaga

Percebo, através do sinal vermelho, que estava prestes a entrar na contra-mão. Corrijo-me no verde, mas já não sei onde estou. O rádio toca o obscuro doom de alguma banda sueca ou francesa, cantado em inglês. O limpador de pára-brisa lentamente afasta as gotas acumuladas, o chão molhado brilha refletindo a luz dos postes. “Faltam quarteirões”, penso, e olhando as horas no painel duvido que chegarei a tempo. Sem direção, sem mapa, sem gps, sem qualquer forma de orientação no espaço, achego-me ao tempo. “Não tem importância”, avalio depois de vários minutos. “Não vai dar pra chegar”. Desobrigando-me de qualquer objetivo, de qualquer razão para estar dirigindo àquela hora, naquela noite, eu apenas sigo. Vejo setas apontando para a direita, para a esquerda. Escolho a esmo, sem saber se ando em círculos. É um instante perdido numa noite vazia. É catártico saber que, enquanto uns se preparam para a manhã de dia útil e outros se apertam em sapatos desconfortáveis, eu vagueio. “Vagueza é sinônimo de riqueza”, dizia Federico. Enxergo isso agora, entre letras e acordes funerais. “Qual é a riqueza deste momento?”, olho no retrovisor. À minha frente o sinal novamente fecha, há luzes fortes no posto de gasolina. Um desgarrado sedã se acomoda ao meu lado, com vidro fosco. É em seu reflexo espelhado que o verde se derrama, pouco antes de não restar nada. À minha frente vejo a lagoa.