N'água e na pedra amor deixa gravados
seus hieróglifos e mensagens, suas
verdades mais secretas e mais nuas.

"Entre o ser e as coisas"
Carlos Drummond

quinta-feira, 15 de outubro de 2009

Transmutação

Uma luz soa na penumbra,
oculta em reflexões, embevecida,
denunciando a opacidade de frases
enfeitadas, obsoletas e vazias.

O irmão em luta desabrida,
não sendo estranha elevação tempestuosa,
nem menos queda vertiginosa,
de pensamentos em demasia.

Uma equanimidade fugidia
era sua em brevidade,
aliviando intelecto, sangue exposto,
vida espargida em água fria.

Subir, arrostando pedregulhos,
divisando extensão inexplorada,
rio, areia e montanha,
encontrando na descida intrépida
a alquimia buscada.

O cinco pulsante

Um cinco azul, iluminado,
pulsante coração em radiância
circulando o fluido envivescente.

sábado, 22 de agosto de 2009

Pena

João Emídio não gostava de si mesmo. A começar pelo nome, sobrevivência esdrúxula do século XIX em plenos anos 80. O garoto cresceu sendo chamado “João Milho”, depois apenas “Milho”, chegando a “Bisavô”, para então sossegar em “Bisa”. Mas isso era só o começo. Os óculos, o jeito desengonçado, a bombinha para asma e as notas altíssimas eram motivos adicionais de chacota. Chegou a errar questões de propósito nas provas, para não acharem que gostava de estudar. Isolando-se dos colegas, deixou de perceber que ao seu lado havia crianças tão doloridas quanto ele.

A adolescência não foi mais promissora. O tempo passou sem que encostasse a língua na de uma mulher. Chegou assim aos dezessete anos. Foi quando, para sua surpresa, uma colega com quem fazia trabalhos o beijou. Sem saber o que fazer, fez o mesmo que ela, mexendo a língua dentro da sua boca. Taquicardiamente, deixou-se escorrer por várias horas, do mesmo jeito. Palavras, raras, sussurradas a roçar o ouvido. Descontava na garota os anos de escárnio e auto-desprezo que sua virgindade total gerava.

Era a hora. Na missa de domingo os pais sumiam. Chamou Regiane. “Ah... não dá, tenho que estudar”, desculpou-se soando constrangida. João Emídio sentiu-se ludibriado. Foi, então, uma ficada por pena, por ela saber de sua história e querer “ajudar”? Muito ordinária, essa menina.

No dia seguinte, tratou-a gelidamente. Não retribuía seus sorrisos, não ria de seus gracejos, não dava continuidade às conversas. Ficou assim por vários dias, até que Regiane desistiu. Virou o espelho do amado. Glacial, olhava-o sem piedade.

O ano acabou, assim como o ensino médio. Não se encontrariam mais todos os dias, que alívio. Ou tragédia. Mas quis o destino ou qualquer outra entidade metafísica que ambos gostassem de ciências humanas. Acabaram na Fafich, ele na filosofia, ela na comunicação.

Cruzavam-se sempre. Não se cumprimentavam. Com um ano e meio de curso, esbarraram-se numa vinhada. Emídio se aproximou, conversando fiado. Regiane lhe sorria, parecia que se conheciam agora. O futuro filósofo cumprimentava-se envaidecido. “Então ela gosta de mim”, pensava. Chegou um homem e a enlaçou pela cintura. Deu-lhe um beijo molhado e lascivo. “Este é o Norberto, meu namorado”. “Muito prazer”, respondeu Emídio já saindo.

Se era assim, sabia que Pâmela estava disponível. Foi atrás dela no fim de semana, e nos dias que se seguiram informou-se sobre o outro e os planos noturnos do casal. Levou Pâmela a uma boate de black music, e fez questão de posicionar-se à vista de Regiane enquanto a agarrava. A mulher, ao longo da madrugada, inebriou-se o suficiente para colocar as mãos de Emídio em sua bunda, em seus seios, em seu sexo exposto num vestido sem calcinha. “Eu quero ir no banheiro”, sussurrou bem perto do ouvido para o parceiro ouvir. Pegou-lhe as mãos e se dirigiu placidamente ao banheiro masculino. Transaram britânicos onze minutos. Saindo, deram de cara com Norberto. “Perfeito”, felicitou-se Emídio, tentando conter o sorriso mas não conseguindo.

Semanas depois, Emídio deparou-se com Regiane sozinha na cantina, engolindo alguma coisa assada. Comprou seu lanche e se aproximou da mesa dela. “Posso?”, perguntou, e sentou-se ao receber consentimento. Ela não sorria como no outro dia. Desconcertado, Emídio acabou evocando aleatoriamente um episódio de seus tempos de colégio. “É”, respondeu, “muitas coisas boas aconteceram lá”. Emídio sentia que a frase não estava completa. “Mas tem uma coisa que eu não entendo, quem sabe você possa me esclarecer”, disse Regiane num tom grave. “Por que diabos você começou a me tratar mal depois que a gente ficou?” Emídio sentiu aproximar-se uma taquicardia familiar. Mudo, mirou direto nos belos olhos daquela mulher, até que não resistiu e desviou-se. “Olha, eu tenho que ir, minha aula vai começar. Até.” Regiane levantou-se e desapareceu.

Passaram dois anos se cruzando e fazendo sinais com a cabeça. Não compartilharam mais uma mesa. Até que arrumaram um amigo em comum, sem saber disso. Ambos convidados para uma madrugada no bar, depararam-se incrédulos. Misturaram-se na conversa do grupo. Depois de várias horas e garrafas de cerveja, Regiane quis ir embora. O carro estava na oficina. “Eu te dou uma carona”, prontificou-se Emídio, “você mora perto”.

A viagem foi silenciosa. Emídio procurava um assunto, não encontrava nada, tão tenso estava. Chegaram, ele encostou o carro. “Bom, obrigada”. Quando ia abrir a porta, Regiane surpreendeu-se com a fala do ex-ficante. “Sabe aquilo que você me perguntou?” Emídio controlava esforçadamente a entonação de suas palavras. “Eu achei que você ficou comigo pra fazer caridade”. Regiane a princípio pasmou-se, em seguida lançou-lhe um olhar que não era gélido, não era ressentido, não era amargo: era de pena. E foi isso o que ela disse: “que pena”.

Saiu do carro, enquanto começava a chuviscar.

sexta-feira, 15 de maio de 2009

Música no asfalto

Meia hora depois de deixar meu irmão para almoçar e passar a tarde com amigos na casa da colega, recebi um recado seu, no celular:

"Genalva, vem me buscar que eu estou odiando".

Eu não podia atendê-lo de imediato, fazia compras no supermercado.

Finalmente saí, e quando estava a alguns quarteirões do local, encontrei uma fila estática de carros aborrecidos. O sinal estava verde. Amarelou-se, e passou ao vermelho. Voltou ao verde. Os automóveis, indóceis, buzinavam em coro, resmungando, parados. De novo o fugaz amarelo, de novo o demorado vermelho. E a cena foi se repetindo, num ciclo infernal.

O celular tocou na minha bolsa, exasperando-me com uma melodia chata. "Tenho que trocar este ringtone", resolvi. Aquilo me irritava. Atendi, já prevendo a insistência surda de Gumercindo.

– Cadê você, Genalva? Não vem, não?

– Gu, eu tô presa no sinal, ninguém aqui sai do lugar.

– Mas que saco, Genalva, vem logo!

Como se eu pudesse levantar voo, num carro de filme americano. A impaciência de Gumercindo somava-se à dos carros, e a balbúrdia começava a doer na minha cabeça. Dispensei-o, gritando que eu não era um deus para me teletransportar para onde bem quisesse, com onipresença em potencial.

A essa altura, motoristas saíam de seus veículos e soltavam impropérios para os supostos molengas à sua frente. Começavam discussões. Alguns acendiam cigarros e compartilhavam a curiosidade enfastiada, querendo desvendar o motivo de tanta demora. Os mais ousados resolviam caminhar para frente, procurando a solução do enigma, como sherloques do meio-dia. Outros, mais tímidos, nem baixavam os vidros, com medo dos trombadinhas.

Após algum tempo, veio a explicação: um pedreiro, que trabalhava na construção de um prédio, despencara do décimo andar, no meio da rua. Em seu desequilíbrio, agarrou-se a outro, tentando evitar a queda, mas não conseguiu mais do que levá-lo consigo. O resultado foi que caíram, um em cada pista, vermelhos, e ninguém tinha nervos para pegá-los e colocá-los no passeio.

Ao ouvir a inusitada história, só consegui pensar, "meu Deus, estou numa música do Chico!" Foi então que me invadiu uma ambiguidade inquieta. Por um lado, compaixão pelos desafortunados operários. Por outro – e eu não sabia qual sentimento predominava – um certo orgulho de me ver assim conectada à magnífica arte de meu endeusado compositor.

O celular tocou de novo. Rejeitei a ligação e pensei, "já sei que ringtone vou escolher".

domingo, 26 de abril de 2009

Ilusionismo benigno

Eras um caleidoscópio demovente
Impulsionada em rotos lençóis
Colchões calejados
Cabeceiras postas ao chão

Cabelos longos louros
Escondendo olhos castanhos
Na planilha do não-quero-mais

Rejeitando soberbas
Nua por cima de fontes
Adegas naturais
De insensatez imperiosa
Jorrando cores
Dispostas em desleixos

Representavas damas
Leques, decotes de saias
Prostitutas recatadas
Inocência, malícia

Vestidos de gala

segunda-feira, 6 de abril de 2009

A Beleza e a Obscuridade

Foi em 1997 ou 1998, não sei bem ao certo. Apresentaram-me um disco de uma banda da Suécia que transitava entre o hardcore e o metal. Purusam era o nome. A princípio, gostei muito daquele cd pesado e sombrio, chamado “The Way of the Dying Race” (O Caminho da Raça Moribunda), lançado em 1996.

Mas foi só uns quatro ou cinco anos mais tarde, em 2002, que essa banda tornou-se a minha preferida (hoje, outros suecos, os do Opeth, compartilham essa posição na minha lista hierárquica musical). Nesse ano, conheci o segundo (e último) disco do Purusam, “Daybreak Chronicles” (Crônicas do Amanhecer), lançado em 1997, que, hoje, não sei se ponho ou não à frente do primeiro, mas que na época foi decisivo no sentido de eu colocar essa banda num lugar tão elevado.

Formada em 1994, Purusam passou por diversas alterações de elenco até sua extinção, em 1998. Possui um instrumental bastante elaborado, fugindo dos clichês do gênero, acompanhado por um vocal masculino gritado e um feminino limpo. Suas músicas se alternam entre a agressividade e a melodia, assim como as letras caminham entre a fúria e a poesia.

Purusam é uma banda extremamente pouco conhecida. Isso me surpreende e me incomoda, devido à sua qualidade superior. É um mistério para mim, uma dessas coisas inexplicáveis deste estranho planeta Terra. Má distribuição? Pouco (ou nenhum) marketing? Para se ter uma ideia, a partir de um elemento que, embora não seja 100% revelador, não deixa de ter sua significação, Purusam tem hoje apenas 949 ouvintes no Last.fm (confira aqui a página da banda - a biografia foi escrita por mim), contra 363 mil do Opeth. Outros músicos de alta qualidade, relativamente pouco conhecidos, como The Gathering e Jeff Buckley, têm, respectivamente, 192 mil e 742 mil ouvintes no mesmo site. O Radiohead está na casa dos 2 milhões e é um dos mais ouvidos por lá.

Vou transcrever, abaixo, uma das letras dessa sensacional banda sueca, cujo nome significa, em sânscrito, o espírito universal (sem entrar nas sutilezas da filosofia védica). Deixo a música para quem quiser ouvir uma amostra. Ela se chama “The Realm of Time” (O Reino do Tempo), e é a terceira faixa do “Daybreak”.

Aproveitem.
“The Realm Of Time”

Sometimes life is ticking away
Sometimes there is no reason left to stay
And sometimes it's beauty like never before

We will never appreciate it
No one that loves or hates it
No one that cares at all

Time flows like a river
And history repeats
A life is an eternity

Sometimes it's a wonderful dream
Sometimes life is as beautiful as mean
Just like before


“O Reino do Tempo”

Às vezes a vida está indo embora
Às vezes não há razão mais para ficar
E às vezes é a beleza como nunca antes

Nós nunca iremos apreciar
Ninguém que ama ou odeia
Ninguém que se importa

O tempo flui como um rio
E a história se repete
Uma vida é uma eternidade

Às vezes é um sonho maravilhoso
Às vezes a vida é tão bela quanto mesquinha
Do mesmo jeito que antes

quinta-feira, 26 de março de 2009

Os óculos

Ela era inusualmente distraída. Costumava esquecer as coisas por todos os cantos. Mais especificamente, seus óculos – estava sempre perguntando repetidamente, “onde estão meus óculos? onde deixei meus óculos? onde você esqueceu meus óculos?” O resultado disso é que eu estava sempre os encontrando, aleatoriamente, andando pelo apartamento – no criado-mudo, na escrivaninha do escritório, na mesinha em frente ao sofá, na pia do banheiro. E geralmente ela estava dormindo como se o mundo nem existisse, estirada na cama, na poltrona do escritório, numa cadeira da sala, apoiada na mesinha do sofá. E então parecia que aqueles óculos eram muito mais do que uma armação sustentando lentes corretivas. Eles pareciam algo vivo, com personalidade própria, que me olhava fixamente como um catalisador de lembranças. Porque sim, aqueles óculos eram antigos, eu lembrava o dia em que ela os tinha colocado pela primeira vez, depois de uma visita contrariada ao oftalmologista. Então eu, como se fossem o que havia de mais frágil, os pegava e ia aonde quer que ela estivesse, olhos fechados, respiração surpreendentemente leve para uma adormecida, e a contemplava como se a cada momento ela fugisse de mim, como se a cada momento eu ficasse mais perto de ficar no mundo sem nada, totalmente só – restando-me somente os seus óculos.

terça-feira, 17 de fevereiro de 2009

O Mago e o Fogo

Neste dia, 17 de fevereiro, no ano de 1600, Giordano Bruno era queimado vivo pela Inquisição.

Conhecido como mártir da ciência - ele defendia não apenas que a Terra é que gira em torno do Sol, e não o contrário, mas, indo além, dizia que o Universo era infinito -, Giordano foi muito mais um mártir da liberdade de pensamento. Suas visões de astronomia, até então, não eram vistas como heresias pela Igreja.

O que pesou contra ele foi outra afirmação - a de que Jesus Cristo não era Deus, mas apenas um grande mago. Aliás, isso é o que Giordano era, acima de tudo: um mago, um mago-filósofo. Um de seus livros se chama justamente "Tratado sobre a Magia".

Sua tendência a flertar com ideias heréticas começou quando ainda estava no convento dominicano, aos vinte e poucos anos. Acusado de discutir a heresia ariana - justamente a que nega a Cristo o caráter divino -, foi forçado a fugir, quando começaram a surgir acusações formais.

Sua vida depois disso foi marcada pela peregrinação. Passou pela Suíça, pela França, Inglaterra e Alemanha. Em todos esses lugares enfrentou problemas com as autoridades locais, devido à sua insistência em dizer o que pensava.

Em 1591, foi convidado por um nobre de Veneza a ir para essa cidade, onde lhe ensinaria a arte da memória. Porém, chegando lá, Bruno percebeu que o nobre tinha motivos egoístas para querer aprender a arte, e se recusou a ensinar-lhe. O nobre, então, em 1592, o denunciou à Inquisição.

O que veio a seguir foram oito anos de julgamento. Ao final, como Giordano se recusou a se retratar, foi condenado. Com uma tábua pregada em sua língua, para ele não poder mais "blasfemar", foi queimado vivo na fogueira.

Hoje, na praça em que foi assassinado, em Roma, há uma estátua do filósofo-mago.

Uma pergunta fica no ar: vale a pena morrer para defender suas ideias? Quem faria isso, nos dias de hoje? Não sei exatamente. Porém, ainda há pessoas que morrem, se não para defenderem ideias, para defenderem ideais políticos. São poucos em termos relativos, mas ainda há os que defendem direitos humanos, em diversas partes do mundo, sabendo que correm o risco de "desaparecer" - termo eufemístico para "ser assassinado" - e muitas vezes é isso o que acontece.

Giordano Bruno o fez. Termino com a frase que atribuem a ele, no momento em que sua sentença foi lida.

"Talvez vocês tenham mais medo, ao ler minha sentença, do que eu, ao ouvi-la".