N'água e na pedra amor deixa gravados
seus hieróglifos e mensagens, suas
verdades mais secretas e mais nuas.

"Entre o ser e as coisas"
Carlos Drummond

quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

Beethoven

Quinta-feira. Luzes apagadas, movimento-me tateando as paredes. Elas me cercam, muros opacos, ásperas cavidades. Ouço o telefone tocando na sala ao lado, remanescente obsoleto funcionando sem luz. Distante agora das paredes, tateando agora o ar. Agora. “Alô?”, pergunto, para escutar o sinal de linha. Sem bina, a relíquia sossega e não chama de novo. O que fazer, rodeado de livros, e mais nada, procurar um fósforo e uma vela. “É o que dá ser imprevidente”, penso dando-me conta de não ter nenhuma. Debruço-me sobre a janela, toda a cidade apagada, lua nova, céu cinzento, breu completo. Resolvo então sentar-me na confortável poltrona, ponho-me a ouvir o Beethoven gravado em minha mente, heroico, furioso, como um preso na solitária. Cego por uma noite, mas por dentro imagens deslocando-se lépidas num cinema particular. Ondas de lembranças, marés de fantasias, criança descobrindo o mar, homem sem conseguir escutar a menina, colares atirados, tudo se mistura em meio a água e sal. Terra firme, montanha, neve, tornozelo cortado, alpinistas prestes a se espatifar, safando-se na última hora. Tanto esforço, tanto suor e sangue, furando túneis, arrastando-se em canos rumo ao céu aberto, liberdade, liberdade, liberdade. O temporal retoma sua sinfonia de trovões e clarões, água desabando ruidosamente nos telhados, nos vidros das janelas fechadas, abrigo. Ao longe, gente se afogando, bens destruídos, vidas transtornadas, calamidades públicas, deslizamentos, estados de emergência. “Amanhã”, antecipo, “limpar o que a água sujou”. O homem, a natureza, o combate, a lida, sobreviver. Ao som de Beethoven, o destino, a alegria.

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