N'água e na pedra amor deixa gravados
seus hieróglifos e mensagens, suas
verdades mais secretas e mais nuas.

"Entre o ser e as coisas"
Carlos Drummond

terça-feira, 14 de fevereiro de 2012

A travessia dos olhos opacos

Não somos vassalos do ontem, nem do amanhã. Não somos vassalos de tempo algum. O tempo em que brisas eram furacões. O tempo do fogo e das encostas devastadas. Éramos simples e não sabíamos nadar, circundávamos os rios correndo hábeis por suas curvas resolutas. O sol nascia do mesmo jeito, eu bem me lembro. As nuvens se desfaziam e retornavam sempre novas. Não conhecíamos tela e tinta – as estrelas eram nossos quadros, a noite nossa parede. Contemplávamos o amanhecer dourado e cabelos molhados dançando na tempestade. Hoje não nos olhamos uns aos outros. Só enxergamos a nós mesmos na superfície cristalina e lustrosa dos olhos alheios. Podemos dizer que vimos algo além da nossa própria imagem? Os seres que conhecem suas cicatrizes, que as amam intrépidos, enxergam melhor. Não tropeçam possuídos em seus pedaços espalhados pelo chão que pisam, nem os farejam vorazmente pelas curvas dos corpos que exploram com os sentidos, escondendo de si mesmos as fendas doloridas de suas peles porosas. Veem cores. Estes são verdes, aqueles azuis, os outros castanhos. Opacos, convexos. Querem enxergar para além das pupilas. O tempo dos oceanos polares. Das grandes migrações. Podíamos nos olhar por dias, mas os assuntos eram escassos. Agora podemos nos falar por semanas, e não dizer nada. O tempo dos clarões e telepatias. Das profecias consumadas. Podem nossas gargantas resgatar nossas verdades, nossos ouvidos compreender propósitos singulares, nossos olhos romper nossos reflexos, penetrar espíritos enclausurados? Não somos vassalos do ontem, nem do amanhã. Não somos vassalos de tempo algum. Falemos então, e ouçamos. Olhos nos olhos.

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