N'água e na pedra amor deixa gravados
seus hieróglifos e mensagens, suas
verdades mais secretas e mais nuas.

"Entre o ser e as coisas"
Carlos Drummond

sábado, 27 de setembro de 2008

A Sereia

Todo o período de nossas vidas se resume nas reincidentes, e sempre malogradas, tentativas de eludir a realidade. A ilusão primordial, substância de todas as outras, nos faz crer que somos imortais. Desde o garoto que, na carona do carro sedento de perigo, abaixa o vidro e se coloca do lado de fora, impotente em antecipar o violento choque com a parede do túnel, até o piedoso que sacrifica seus parcos recursos ao cesto dourado que lhe dá em troca uma chácara no paraíso, é difícil furtar-se a tão confortável engodo. Dilacerados pela incompletude e insignificância do real, escapamos pela via imaginária, domínio de luzes piscantes e coloridas, onde se ouve o canto ininterrupto das sereias prometendo o impossível.

Certa vez, não me lembro exatamente quando, deparei-me com uma dessas fascinantes criaturas. O que a princípio cativou minha atenção foi seu ar distante e perdido, sugerindo uma diferença essencial em relação a tudo o que a rodeava. Encontrei-a sentada no rochedo, com o olhar vagamente direcionado ao oceano soberanamente impassível e indiferente, cuja superfície o vento suave embalava como a um recém-nascido. Observei-a por um tempo que se fazia de duração infinita, sua imagem ferindo meus olhos assombrados, dando-lhes a impressão de que sua alma era imensurável como a extensão daquelas águas, com uma obscura profundidade pródiga em segredos e estranhas belezas, em que um enlevo fugaz basta para penetrar o inesgotável labirinto onde o homem arrisca perder-se, na ânsia do ardiloso objeto que insiste em desaparecer no momento mesmo em que é encontrado.

Ao notar minha presença, lançou-me um enigmático sorriso, fitando-me fixamente com intensidade hipnótica, esvaziando-me de qualquer pensamento num assalto involuntário. Encontrando-me neste repouso que parecia esquivar-se de todas as injunções temporais, assustei-me quando, num movimento brusco, ela se virou em direção a uma voz que, ao longe, gritava-lhe o nome. Não havia me dado conta de que aquela mulher possuía um nome.

Contemplei então o esvanecer tranquilo da sereia, já restituída aos limites de sua frágil humanidade, despedindo-me silenciosamente, enquanto emergia daquela espécie de distração em que o onírico toma conta do real.

Ondas alvoroçadas dobravam-se sobre as pedras, num trabalho paciente e incansável, e o espetáculo, em sua microscópica totalidade, exerceu sobre mim uma misteriosa atração. Levantei-me e, fechando os olhos, entreguei meu corpo à grande queda, despojado de tudo, sem saber se me esperava a aspereza ou a fluidez.


* Texto escrito em 2003.

2 comentários:

Edu Café disse...

Este texto foi o divisor de águas. Se hoje posso ser chamado de escritor, tudo começou realmente com "A Sereia", texto do primeiro semestre de 2003.

Anônimo disse...

excelente...