Foi melhor assim, pensou Marisa enquanto abria o maço dos cigarros
que Joalvo não suportava. Arrancou o papel cinza que os envolvia e, por
força do hábito, aspirou profundamente o cheiro inebriante do tabaco.
Era tudo o que se permitia fazer desde que fundira ao dele o seu
endereço. Retirou um cigarro, colocando-o, com movimentos lentos, na
boca entreaberta, e, com o isqueiro antigo, que ganhara de outro homem,
num passado tão remoto que ela não conseguia ligar ao presente, acendeu a
ponta, sugando calculada, mas vigorosamente, a fumaça através do filtro
branco.
Viu os olhos dele. Olhos vivos e desolados,
ao contato das suas palavras de despedida, do seu perfume agridoce, da
sua face incólume. Não parecia haver restado traço algum do brilho úmido
que tantas vezes havia gerado neles. Olhos secos. Agudos. Impotentes
diante da resolução inabalável, consequência furtiva da ação de uma
criatura dissolvente e imaterial que, sob relances míopes e tímidos,
nascera às escondidas e ganhara aos poucos dimensões consideráveis,
conduzida pelo balanço das vontades, tomando o leme de assalto e, num
sopro mais forte que ameaçava revolver as águas, sussurrava aos seus
ouvidos que era hora de aportar.
Uma lágrima escorreu
solitária e se encontrou, na língua, com o cigarro, levando-a à ideia de
uma inalação do fluido que é o símbolo e o resultado de uma emoção
intensa e carregada de sentido. Quis a descida de mais uma, mas a
serenidade já a dominava. Sem abandonar a beleza dos olhos de Joalvo,
deu a última tragada.
Nunca mais o veria. Mas
prometeu-se, como fidelidade ao enlevo sublime que a elevara sem enganos
à face mais calma do deleite, que a arrebatara por todos aqueles anos,
tão sutil e tão definido, tão inteiro e tão gratuito, a um só tempo
contido e transbordante, jamais esquecer os seus olhos.
N'água e na pedra amor deixa gravados
seus hieróglifos e mensagens, suas
verdades mais secretas e mais nuas.
"Entre o ser e as coisas"
Carlos Drummond
quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012
sexta-feira, 24 de fevereiro de 2012
O domador das águas
Este imperioso desejo,
que déspota carrega
o poder destrutivo
de um tsunami odioso,
arrancando raízes,
fanando pétalas tornadas
dissolvidas, maculadas,
renegando sem piedade
o júbilo de momentos
indeléveis e precisos,
eu me declaro
sobre ele soberano,
atento ao sinal
de qualquer submarino
terremoto, soando
alarme amigo,
retirando da costa
tudo o que é vivo
em mim, rumo às
montanhas do fogo
que, em combustão
deliberada, com leveza
desintegra
todo traço de tirania
e descontrole,
de capitulação absoluta
frente às águas caudalosas
da dileção tresloucada.
que déspota carrega
o poder destrutivo
de um tsunami odioso,
arrancando raízes,
fanando pétalas tornadas
dissolvidas, maculadas,
renegando sem piedade
o júbilo de momentos
indeléveis e precisos,
eu me declaro
sobre ele soberano,
atento ao sinal
de qualquer submarino
terremoto, soando
alarme amigo,
retirando da costa
tudo o que é vivo
em mim, rumo às
montanhas do fogo
que, em combustão
deliberada, com leveza
desintegra
todo traço de tirania
e descontrole,
de capitulação absoluta
frente às águas caudalosas
da dileção tresloucada.
domingo, 19 de fevereiro de 2012
Alguém me ouve a menos de sete palmos?
Não sei se estou
falando para os túmulos
se me ouvem
unhas e cabelos
que seguem crescendo
lado a lado
com os vermes
em corpos nauseabundos
Talvez minhas palavras
estejam há muito
decaídas
empoeirando as casas
mal assombradas
pelos espíritos doídos
das desventuras
de outras vidas
Soando barítonas
e cadavéricas
sob aplausos
e estalos inaudíveis
pedaços de ossos espalhados
entre mãos dadas
e velas retorcidas
Outra voz porém
não tenho
se todo sentido
finda obsoleto
serei um lembrete
em forma de fantasma
de quando se precisava
de alertas
e do passar do tempo
Se uma alma viva
meus discursos tocam
festejemos anacrônicos
em meio a cores novas
quem sabe nosso coro
como suave contraponto
pelo vento carregado
atinja uma dimensão precisa
que o presente renegava
falando para os túmulos
se me ouvem
unhas e cabelos
que seguem crescendo
lado a lado
com os vermes
em corpos nauseabundos
Talvez minhas palavras
estejam há muito
decaídas
empoeirando as casas
mal assombradas
pelos espíritos doídos
das desventuras
de outras vidas
Soando barítonas
e cadavéricas
sob aplausos
e estalos inaudíveis
pedaços de ossos espalhados
entre mãos dadas
e velas retorcidas
Outra voz porém
não tenho
se todo sentido
finda obsoleto
serei um lembrete
em forma de fantasma
de quando se precisava
de alertas
e do passar do tempo
Se uma alma viva
meus discursos tocam
festejemos anacrônicos
em meio a cores novas
quem sabe nosso coro
como suave contraponto
pelo vento carregado
atinja uma dimensão precisa
que o presente renegava
terça-feira, 14 de fevereiro de 2012
A travessia dos olhos opacos
Não somos vassalos do ontem, nem do amanhã. Não somos vassalos de tempo algum. O tempo em que brisas eram furacões. O tempo do fogo e das encostas devastadas. Éramos simples e não sabíamos nadar, circundávamos os rios correndo hábeis por suas curvas resolutas. O sol nascia do mesmo jeito, eu bem me lembro. As nuvens se desfaziam e retornavam sempre novas. Não conhecíamos tela e tinta – as estrelas eram nossos quadros, a noite nossa parede. Contemplávamos o amanhecer dourado e cabelos molhados dançando na tempestade. Hoje não nos olhamos uns aos outros. Só enxergamos a nós mesmos na superfície cristalina e lustrosa dos olhos alheios. Podemos dizer que vimos algo além da nossa própria imagem? Os seres que conhecem suas cicatrizes, que as amam intrépidos, enxergam melhor. Não tropeçam possuídos em seus pedaços espalhados pelo chão que pisam, nem os farejam vorazmente pelas curvas dos corpos que exploram com os sentidos, escondendo de si mesmos as fendas doloridas de suas peles porosas. Veem cores. Estes são verdes, aqueles azuis, os outros castanhos. Opacos, convexos. Querem enxergar para além das pupilas. O tempo dos oceanos polares. Das grandes migrações. Podíamos nos olhar por dias, mas os assuntos eram escassos. Agora podemos nos falar por semanas, e não dizer nada. O tempo dos clarões e telepatias. Das profecias consumadas. Podem nossas gargantas resgatar nossas verdades, nossos ouvidos compreender propósitos singulares, nossos olhos romper nossos reflexos, penetrar espíritos enclausurados? Não somos vassalos do ontem, nem do amanhã. Não somos vassalos de tempo algum. Falemos então, e ouçamos. Olhos nos olhos.
quinta-feira, 9 de fevereiro de 2012
A febre
Seus olhos vãos
não me querem mais;
não seriam vãos
se me quisessem ainda.
Não me servem de nada
agora, sob os pingos vigorosos
que mancham minhas lentes
de contato descoloridas.
Você foi como um corpo
estranho em meu sangue,
a dose derradeira
do puro malte escocês
depois de um porre
de aguardente vadia.
O álcool nunca pôde
com nossa sensatez obstinada,
furando cerdas em tecidos
esgarçados,
encouraçados pavios em flamas
derretendo cera quente
em umbigos desgarrados.
Agora espero meu corpo
renunciar ao ardor,
anticorporar
tudo o que de você
me resta ainda,
e seus olhos vãos,
como é vão o centro do oceano,
para sempre inacessíveis,
flutuarão à deriva,
além dos horizontes.
não me querem mais;
não seriam vãos
se me quisessem ainda.
Não me servem de nada
agora, sob os pingos vigorosos
que mancham minhas lentes
de contato descoloridas.
Você foi como um corpo
estranho em meu sangue,
a dose derradeira
do puro malte escocês
depois de um porre
de aguardente vadia.
O álcool nunca pôde
com nossa sensatez obstinada,
furando cerdas em tecidos
esgarçados,
encouraçados pavios em flamas
derretendo cera quente
em umbigos desgarrados.
Agora espero meu corpo
renunciar ao ardor,
anticorporar
tudo o que de você
me resta ainda,
e seus olhos vãos,
como é vão o centro do oceano,
para sempre inacessíveis,
flutuarão à deriva,
além dos horizontes.
sábado, 4 de fevereiro de 2012
Coragem
É montar
um elefante
embriagado
numa ponte
de madeira
pra ver
o mar
pelo menos
uma vez.
É roçar
vestígios
do papel
que desintegra
sossegado
na fogueira
querendo
tornar
cinzas
em solidez.
É pular
amarelinha
em números
de brasa
e viver
abrindo
os olhos
sem os fechar
ao espelho
mirando
a própria
nudez.
É contemplar-se
nas águas
e saber
que você
como sua imagem
se move
ao sabor
do tempo
e que seus olhos
brilham
desvelando
quando tudo
o que queria
era esconder.
um elefante
embriagado
numa ponte
de madeira
pra ver
o mar
pelo menos
uma vez.
É roçar
vestígios
do papel
que desintegra
sossegado
na fogueira
querendo
tornar
cinzas
em solidez.
É pular
amarelinha
em números
de brasa
e viver
abrindo
os olhos
sem os fechar
ao espelho
mirando
a própria
nudez.
É contemplar-se
nas águas
e saber
que você
como sua imagem
se move
ao sabor
do tempo
e que seus olhos
brilham
desvelando
quando tudo
o que queria
era esconder.
Assinar:
Postagens (Atom)