N'água e na pedra amor deixa gravados
seus hieróglifos e mensagens, suas
verdades mais secretas e mais nuas.

"Entre o ser e as coisas"
Carlos Drummond

sexta-feira, 3 de outubro de 2008

Francisco: um outro aniversário


Eis aqui uma confirmação do que eu disse no post anterior: até mesmo a data de morte desses caras é lembrada, embora talvez não com a mesma intensidade. Mas, no caso da figura contemplada neste texto, não há certeza sobre sua data de nascimento, o que torna o outro “aniversário” mais significativo. Hoje, então, completam-se exatos 782 anos que o sujeito em questão “morreu” (lembrando que estamos aderindo à tese de que certos caras não morrem).

O bebê Giovanni di Bernardone nasce em 1181 ou 1182, em Assis, na Itália. O pai não gosta do nome escolhido pela mãe (em homenagem a São João), enquanto ele estava no exterior, então muda-o para Francesco, supostamente por sua simpatia pela França, país com o qual mantém relações comerciais. Francisco torna-se conhecido então como o “pequeno francês”.

Na infância, ouvindo falar de Francisco de Assis, primeiramente descobrimos que é um santo, já que geralmente se referem a ele como “São” Francisco. Dizem-nos que gostava de animais (até conversava com eles) e da natureza (chamava o Sol e a Lua de irmãos). Contam que era rico e abandonou tudo para viver uma vida simples e sem posses.

Trata-se de um dos santos mais admirados por não-católicos, talvez pelo desprendimento que contrasta com as Igrejas douradas e suntuosas, que freqüentemente vêm à mente quando se critica essa igreja de 1600 anos, além da imagem de suavidade, que contrasta com as perseguições e as fogueiras, feridas que ficaram marcadas na história. É interessante notar que um comunista ateu projetou a Igreja de São Francisco, aqui em Belo Horizonte.


Há uma coisa em caras como Francisco que me provoca, ao mesmo tempo, admiração e espanto: a difusão e sobrevivência de suas obras e pensamentos.

Começando na provincial Assis, filho de um abastado comerciante, vive uma vida mundana. É trovador, e almeja escrever poesias em francês. Mas, ao mesmo tempo em que leva uma vida de luxo, é acometido por crises existenciais.

Tem uma visão de um esplêndido palácio, cheio de armas e onde havia uma belíssima mulher. Resolve possuir essas coisas, e se alista no exército. Porém, enquanto viaja para combater, é feito prisioneiro. Adoece. Tem uma nova visão, em que Deus o exorta a voltar para casa e viver espiritualmente.

Já na terra natal, certo dia, depara-se com um mendigo. A experiência é tão intensa que ele lhe dá tudo o que carrega nos bolsos. Seus amigos o escarnecem e o pai o censura veementemente.

Mais tarde, encontra um leproso e beija-lhe as mãos, apesar de sua repugnância, dando-lhe as moedas que carregava consigo. O leproso, em seguida, some misteriosamente.

Em outra visão, o ícone de Cristo crucificado, de uma igreja em que Francisco rezava, toma vida e diz: “Francisco, não vês que a minha casa está em ruínas? Restaura-a para mim”. Vende então o seu cavalo e o tecido do seu pai, com o fim de restaurar a igreja em que estava. É castigado pelo pai por isso, inclusive fisicamente.

Depois de ouvir um sermão baseado no Evangelho de Mateus, em que Cristo diz que seus discípulos devem proclamar o Reino dos Céus, sem levar dinheiro, nem cajado ou mesmo sapatos, o futuro santo esposa uma vida de pobreza.

Numa entrevista com o bispo, Francisco renuncia à riqueza paterna, abandonando até as roupas que possuía. Vai viver como mendicante, e mesmo assim consegue restaurar outras igrejas, angariando doações de abonados.

Em pouco tempo atrai seguidores. Vai a Roma com os onze primeiros e se encontra com o Papa, que dá à sua ordem um apoio informal. Alguns anos mais tarde, quando o grupo já é mais numeroso, surge oficialmente a Ordem dos Franciscanos, a “Ordem dos Frades Menores”. Inicialmente ela se difunde na Itália, e depois grupos são enviados à França, Alemanha, Hungria, Espanha e o Oriente.

No final da vida, tem uma visão da Exaltação do Cristo. Um anjo de seis asas, crucificado, teria-lhe aparecido, o que supostamente faz aparecerem as chagas de Cristo (“Stigmata”) em seu corpo.

Sofrendo com essas dores e com uma doença de vista, morre no dia 3 de outubro de 1226, após ter ditado seu testamento espiritual.

Hoje, a religião não é tão parte da vida das pessoas como já foi, ou como já pareceu que era. Os frades franciscanos não são um grupo numericamente expressivo, mas estão aí, assim como os ensinamentos e preceitos de Francisco.

É curioso como coincidiram o nascimento de um grande com a morte de outro, sendo ambos notabilizados pela espiritualidade e mansidão.


Não acredito que todos precisamos ser tão abnegados quanto esses dois personagens. Além do mais, isso seria impossível nas condições atuais. Mas é estimulante refletir sobre como é, sim, possível viver em paz, ainda que se tenha que lutar para alcançá-la e mantê-la, ou se dar conta, ao menos, de que a própria luta é mais importante do que o resultado.

Estão aí os pacifistas, estão aí os ativistas que protestam sem armas. Embora sejam muitas vezes escorraçados violentamente, presos ou mesmo ameaçados de morte pelos poderes constituídos, não abandonam a luta.

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