N'água e na pedra amor deixa gravados
seus hieróglifos e mensagens, suas
verdades mais secretas e mais nuas.

"Entre o ser e as coisas"
Carlos Drummond

sábado, 4 de outubro de 2008

A Marca de Heston


Hoje o ator americano Charlton Heston completaria 85 anos. Morreu neste ano, em abril.

Mas não vou dizer nada sobre ele. Não vou dizer que era um fd... conservador (embora menos quando mais jovem), que era propagandista das indústrias de armas e que fez uma participação memorável em um popular seriado dos anos 90.


Vou falar dos filmes clássicos que ele fez. Dois deles, para ser mais exato. O primeiro, "A Marca da Maldade", de Orson Welles, lançado em 1958; o segundo, "Ben-Hur", de William Wyler, no ano seguinte. Pertencendo a gêneros diferentes – filme noir e épico bíblico, respectivamente –, nem por isso deixam de se encontrar em um ponto: Heston é o herói de ambos os filmes, em que sofre injustiças que precisa reparar.


Mas o que mais salta aos olhos são realmente as diferenças, começando pelo status comercial que obtiveram. Enquanto a super-produção épica custou valores altíssimos para a época, numa aposta bem-sucedida da MGM para salvar-se da bancarrota, o noir, preto-e-branco como mandava a tradição, quase nem saiu, e quando saiu, foi um filme B, lançado secundariamente em relação a um filme A de que nunca ouvimos falar.

A tentativa de Orson Welles voltar a Hollywood, depois de passar um tempo fazendo filmes de orçamento baixo, não foi bem-sucedida. A Universal não acreditava no sucesso dessa obra que se tornou clássica, das mais significativas da história do cinema. Chegou mesmo a cortar cenas e a contratar um segundo diretor para filmar outras. Apenas 40 anos mais tarde seria lançada a cópia que busca fidelidade aos planos originais de Welles, embora no meio tempo tivesse sido lançada ainda outra versão.

Heston ficou sabendo que Welles estaria no filme como ator, e exigiu que fosse este também o diretor, o que já dá uma idéia da diferença de poder que os dois possuíam na indústria cinematográfica americana.

O ator interpreta um mexicano (Tim Burton tirou vantagem disso, ao colocar Orson Welles em “Ed Wood”, desabafando, reclamando desse fato) que está com a noiva americana numa cidadezinha na fronteira com o México. O plano-seqüência inicial, de mais de três minutos, mostra a movimentação da divisa e um homem plantando uma bomba num carro, que explode em seguida.

Aí aparece o detetive Quinlan, magistralmente interpretado por Welles. Talvez esta seja a figura mais característica do filme noir. É um personagem ambígüo. Suas convicções são éticas à sua própria vista. Fez uma carreira em plantar evidências em casas de supostos criminosos, sem que ninguém soubesse. Alega, ao fim do filme, que todos eram “culpados, culpados”. Não é um vilão unidimensional.

“Ben-Hur”, por outro lado, é comparativamente menos matizado. Judah Ben-Hur (Heston), um judeu, tem um romano, Messala, como amigo de infância. Quando este retorna de um longo período de separação, a princípio se felicitam. Mas Messala vai à Judéia para exercer poder, e quando Judah discorda de suas políticas, o legionário aproveita-se de um acidente para culpar o ex-amigo.

Preso, torna-se escravo e vai remar numa galera. Passa por toda uma epopéia, no meio da qual recebe água de Jesus, quando seu capataz o impedia de beber. O Cristo intimida o romano com sua simples presença.


Recebe a oportunidade de participar de uma corrida de bigas, correndo contra Messala. A cena dura mais de dez minutos, e é belíssima.

Ao final, testemunha o calvário de Cristo. Reconhece o homem que lhe deu água, e tenta fazer o mesmo. Porém, é impedido. Sua mãe e sua irmã, que estavam leprosas, são milagrosamente curadas.

Às vezes dá aquela tentação de classificar um como gênio incompreendido e o outro como medíocre bem-sucedido. Mas o fato é que Heston não atua mal, a bem da verdade.

Welles, muito mais apreciado pela crítica do que pelo público, nunca se consolidou como cineasta hollywoodiano. Seus filmes tinham orçamentos baixos e pequena bilheteria. Porém, é colocado entre os imortais do cinema.

Um comentário:

l. f. amancio disse...

A partir desses dois personagens, pode-se pensar sobre bastantes aspectos. Heston demonstra bem a posição não autoral do ator: adequando-se a papéis oportunos, não cria uma marca. vai do filme erudito ao de apelo popular, se ocupando em fazer um bom trabalho.
Já o diretor leva em suas obras características próprias que aparecem no todo. O Welles brilhante, dando novos ares à linguagem cinematográfica, foi constante em uma obra artística demais para os moldes de Hollywood.
Por outro lado, podemos pensar em uma oposição clara: enquanto Herston foi bem sucedido em vida, mas dificilmente será venerado como um gênio, Welles estará sempre na lista dos maiores diretores cinematográficos.