N'água e na pedra amor deixa gravados
seus hieróglifos e mensagens, suas
verdades mais secretas e mais nuas.

"Entre o ser e as coisas"
Carlos Drummond

quarta-feira, 15 de outubro de 2008

Desconfiança

A noite era fria e convidativa. Os bares do Anchieta enchiam-se de bêbados potenciais e vagabundos de ocasião, devidamente encapotados em grossos agasalhos. Rafaela, em seu habitat, pacientemente suportava as cantadas dissimuladas na fala de um desconhecido. Mas era bonito. Que olhos, que boca, que pescoço, que punhos.

Próximos dali, Almeida e Renato mascavam uma dupla de gostosas louras. Fisgavam-nas pelos olhos. Pareciam irradiar-se, penetrando pela visão o dentro delas. “Tá rolando uma festa muito doida numa casa no Santo Antônio”, Renato já foi logo convidando.

Saíram todos no carro de Almeida, com exceção de Rafaela, indo de carona com o pretendente. O destino era o mesmo, era o que importava. A casa era imensa. Nenhum dos convidados lembrava dela, embora freqüentassem o bairro de longa data. Entraram por um portão estreito, que dava para uma garagem de quatro vagas, duas delas já ocupadas.

Desceram, e estranhavam não ouvir nenhum som partindo da casa, embora as luzes estivessem acesas. Entraram. “Vamos subir”, disse Almeida apontando a escada. Chegaram num quarto imenso, com muitos espelhos, incenso, crucifixos e uma cama enorme.

“Sejam bem-vindos à festa”, disse Rafaela enquanto Renato colocava um metal gótico. Os anfitriões então agarraram seus pares. Cada convidado, um mais fascinado que o outro, deixava-se conduzir pelo virtuosismo lúbrico do parceiro.

Horas de orgia e revezamento se passaram. Quem era hetero virou gay, quem era gay virou hetero, todos eram bissexuais, ao menos por aquela madrugada. O relógio indicava a aproximação do alvorecer, quando Cristha, Aldonn e Elirium, sedentos, com gestos lentos sobre os corpos inebriados, expuseram seus afiados caninos, roçando os pescoços antes de furar a pele num jorrar de sangue orgásmico.

Saciados, e apressados pela hora, mutilaram os cadáveres, revestiram-nos com formol e guardaram no armário. Não havia tempo para o serviço completo. Dirigiram-se a outro quarto, mais isolado, com tijolos no que foi um dia uma janela. Acomodaram-se em seus caixões e adormeceram instantaneamente.

Mas a rotina do triângulo não era tão descomplicada quanto poderia parecer por esse relato. A mudança para Belo Horizonte ia fazer vinte e quatro anos, e a casa já estava desgastada. O pacto de transparência no uso da magia já não era cumprido entre eles há quase um século. Ninguém sabia exatamente se estava sendo vítima do outro, tão mesclados já estavam astralmente. Os feitiços acumulados se misturavam àqueles de clãs rivais, criando uma confusão indecifrável.

Na noite seguinte, Cristha se encontrou com uma amiga. Conheciam-se há nove anos. Luísa estava especialmente estonteante. Ria sedutoramente, olhava desafiante, quase tão hipnótica agora quanto a amiga. Após muito uísque, dirigiram-se à casa da mortal. À meia luz, pela primeira vez Cristha roubou-lhe um beijo. Transaram. Deitadas, Luísa exausta, Cristha ajoelhou-se. “Quer ser imortal?” A amante olhou-a sorrindo e pensando estar entrando numa brincadeira maliciosa. “Quero”. A veia saliente do pescoço de Luísa oferecia-se suculentamente. Sentiu os cortantes caninos de Cristha penetrando fundo, num misto de dor lancinante e prazer sem igual, enquanto seu coração vibrava prestes a explodir. Oferecendo o pulso mordido a ela, Cristha ordenou: “beba”. Como um recém-nascido sugando um seio pela primeira vez, Luísa obedeceu, enquanto as batidas de seu coração só aumentavam em volume e força, num crescendo que terminou numa agonia extática. Subitamente, seu coração parou de bater, deixando-a inconsciente. Um momento depois, acordou. Seus olhos não viam como antes. Sua face não era a mesma. Tudo aparecia com mais detalhe e riqueza. Nascia Nadhiva.

Dormiram. Poucos dias depois, Aldonn e Elirium discutiam. A ausência de Cristha preocupava-os. Aldonn, desconfiado, queria livrar-se dela, o que, na verdade, já era plano seu antes de Belo Horizonte. Seu poder superior, advindo da idade de cinco séculos, a tornava quase invulnerável. Sozinhos, não resistiriam, e o que estava se desenhando tinha toda a cara de confronto definitivo.

Elirium era mais moderado. Conhecia Cristha há mais tempo, e hesitava em tomá-la como uma ameaça. Pois esta era a lei: nunca matar os da sua espécie. “Duvido”, dizia Aldonn, “que em quinhentos e vinte anos ela nunca matou nenhum”. Elirium calou-se. Sabia que havia sido bem mais de um, das mais inusitadas e torturantes maneiras.

Cristha voltou a freqüentar a casa normalmente. O silêncio reinava. A imortal estava um dia escrevendo, quando chegaram os dois companheiros. “Quer ir à Serra do Curral?”, indagou Aldonn. Chegando lá, acenderam uma fogueira e se assentaram em círculo, soltando frases a esmo. Cristha e Elirium se entendiam muito bem, conseqüência de ser ela sua mãe na escuridão. Um olhar bastava para comunicarem as informações de um livro inteiro.

Entediado, Aldonn foi explorar a serra. Elirium alimentava a fogueira, placidamente. Um corvo sobrevôou o fogo. Aldonn empunhava uma estaca de ferro. Ouviu a ave, espantou-se por avistar um corvo nessa cidade pela primeira vez. Voando em círculos, foi deixando Aldonn atordoado. Resolveu este, por fim, retornar à fogueira. Elirium já estaria imobilizando Cristha. Pôs-se a andar passos rápidos, sempre acompanhado do corvo. Este, de repente, sumiu, o que fez Aldonn parar. Alguns segundos se passaram, retomou o seu caminho. Mas então dezenas, centenas de corvos apareceram, todos fazendo razantes em torno de Aldonn. Uma ave majestosa e colossal apareceu diante do jovem vampiro de um século e meio. Não era um corvo. No momento mesmo em que Aldonn descobriu o que era, foi totalmente incinerado. Suas cinzas resistiriam àquele fogo. Mas não ao sol que já clareava levemente o negro da noite.

Os gravetos acabaram. Elirium, estirado na grama, foi vendo as estrelas desvanecerem. Cristha, deitada de lado, quis saber: “O que você acha do Rio de Janeiro?”

Um comentário:

l. f. amancio disse...

É interessante ver vampiros andando por Belo Horizonte. Toda a simbologia relacionada a eles é muito européia, fica uma experiência de reorganização imaginá-los por aqui.
Acho complicado escrever um conto com ação em poucas linhas. Talvez, precisamos de mais tempo e mais descrição para nos envolvermos com os personagens em uma situação extrema. Em alguns trechos fica difícil entender os personagens.
Mesmo assim, os elementos do vampirismo estão aí, a eternidade, que poderia ser um poder, mas acaba sendo uma prisão nessa rotina de vícios, circular como a serpente mordendo a cauda. Não sei, só consigo pensar em vampiros como figuras decadentes. O terror que geram nos humanos não consegue salvá-los. A estaca no peito, ou a bala de prata, são as únicas libertações.
Enfim, a experiência de escrever em cima de temas alheios e, a princípio, estranhos, pode ser um meio de variar as questões que estão em nós. Escrever é isso: variações sobre um mesmo tema. Tanto que não consigo desconectar o poema abaixo do conto de vampiros.